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Cinema

A vida é o que você faz dela

Linha de Passe, de Walter Salles e Daniela Thomas, retrata uma família no esforço diário de se reinventar em meio à pobreza e ao caos de São Paulo

Vinícius de Oliveira: de engraxate a ícone do cinema brasileiro, descoberto por Walter Salles no aeroporto de Congonhas | Daniela Thomas/ Divulgação
Vinícius de Oliveira: de engraxate a ícone do cinema brasileiro, descoberto por Walter Salles no aeroporto de Congonhas (Foto: Daniela Thomas/ Divulgação)

Em Os Incompreendidos, de 1969, o diretor da nouvelle vague François Truffaut estabeleceu uma relação com o ator Jean-Pierre Léaud, então com 15 anos, que se manteria ao longo de boa parte de suas vidas. O personagem de Léaud voltaria à cena em outros três filmes que, juntamente com o primeiro, formaria a série de aventuras de Antoine Doinel: Domicílio Conjugal (1970), O Amor em Fuga (1979) e Beijos Roubados (1968).

O diretor brasileiro Walter Salles encontrou seu Jean-Pierre Léaud. É Vinícius de Oliveira, um dos protagonistas de Linha de Passe, novo filme do diretor, feito em parceria com Daniela Thomas, que estréia hoje em Curitiba.

Salles descobriu Oliveira quando este trabalhava como engraxate no aeroporto de Congonhas e o convidou para protagonizar Central do Brasil (1997), ao lado de Fernanda Montenegro. O papel lhe renderia o prêmio de melhor ator jovem, no Festival de Havana, em Cuba, e uma promissora carreira pela frente.

Mais tarde, fez uma ponta em Abril Despedaçado (2001), também de Salles, e hoje, aos 23 anos, é estudante de Cinema.

Em Linha de Passe, o ator não repete seu primeiro personagem, como Léaud nos filmes de Truffaut, mas dá continuidade à saga de jovem pobre, com pai desconhecido. Desta vez, acompanhado por três irmãos.

A periferia de São Paulo é o lugar onde vive a família, chefiada pela mãe, a empregada doméstica Cleuza (Sandra Corveloni, que por sua atuação recebeu o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes), grávida do quinto filho. Antes das filmagens, o elenco conviveu uma semana como uma verdadeira família, em Cidade Líder, misturando-se aos moradores.

De modo bem menos otimista do que em Central do Brasil, Salles e Daniela Thomas desejaram falar de perspectivas, ao entrelaçar as histórias de cada membro da família, em um momento da realidade brasileira no qual elas parecem cada vez mais reduzidas. "A vida é o que você faz dela", diz a frase no cartaz do filme.

Dario (Vinícius de Oliveira), prestes a completar 18 anos, sonha ser jogador de futebol. Dinho (José Geraldo Rodrigues), busca refúgio na religião evangélica. Dênis (João Baldassarini) já é pai de um filho e ganha a vida como motoboy. Reginaldo (Kaique de Jesus Santos), o caçula, mata aulas para empreender longas viagens de ônibus em busca do pai.

Mas não há "tipos" neste que pode ser considerado o melhor filme de Walter Salles. No seu esforço diário para se reinventar, em meio à pobreza e ao caos de São Paulo, os personagens não se desumanizam como em muitos filmes brasileiros em que os jovens da periferia são ou traficantes ou mocinhos. "Em um filme de Abbas Kiarostami ou de Ken Loach, os personagens têm angústias e desejos muitos semelhantes aos nossos. São, ao mesmo tempo, locais e universais. Em Linha de Passe, esses personagens complexos foram criados a partir de várias camadas: primeiro, o roteiro feito a partir de muita pesquisa para ‘esculpi-los’; depois, o trabalho da preparadora corporal Fátima Toledo, de ‘carnificação’ dos personagens; e, por fim, o talento e a doação total de todo o elenco", disse Walter Salles, em entrevista à Gazeta do Povo.

Sandra Corveloni, em sua estréia no cinema, interpreta a sofrida Cleuza com uma sobriedade de gestos e expressões muito próxima à de milhares de outras "Cleuzas" reais. "Tenho uma grande facilidade de assimilar prosódias, sotaques. Além disso, a gente tinha muita liberdade de colocar as palavras na nossa boca", conta a atriz.

O sentimento de "verdade" é fortalecido pelo tom documental que permeia todo o filme. Não há figurantes. Os coadjuvantes são pessoas reais: moradores de Cidade Líder, motoboys, fiéis da igreja evangélica, meninos que aspiram à carreira de jogador de futebol. "Fomos atrás das vozes que fazem a paisagem da nossa vida".

Salles compara a liberdade permitida aos atores ao jazz: quanto mais se conhece a melodia, mais fácil é o improviso. "É um filme feito de modo muito poroso. Não é pensado como uma obra fechada. A improvisação, neste sentido, foi possível dentro desta lógica de fazer com que os personagens fossem uma matéria viva", diz Salles.

Mas o drama vivenciado pelos personagens não tem tintas trágicas. O que se desenrola é o cotidiano familiar que, por vezes, pode ser banal. Como na vida, também há espaço para o riso, provocado em boa medida pelo caçula Reginaldo – na ótima atuação do estreante Kaique de Jesus Santos, de 14 anos.

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