Leonardo da Vinci, Van Gogh, Frida Kahlo e Rembrandt são apenas alguns dos nomes consagrados que retrataram a si mesmos em uma espécie de jogo de espelhos que condiz muito com o temperamento autorreflexivo, e talvez um pouco egocêntrico, do artista, que, em alguma medida, sempre se coloca na obra em relação ao outro ou ao mundo.
Por ser um tema ainda hoje provocativo, mesmo no universo da arte contemporânea, a gravurista Andréia Las o escolheu para lançar um desafio aos artistas que encontrou pela frente: produzir um autorretrato. Seria mais ou menos fácil para cada um, não fosse a condição sine qua non: a obra teria que ser feita em xilogravura.
O convite causou espanto nos escultores, pintores, entre outros profissionais convidados por Andréia a participar do projeto, já que muitos deles pouco ou nunca haviam praticado essa técnica milenar de gravar em madeira. Mas a gravadora se dispôs a orientá-los nos Ateliês de Gravura do Centro Cultural Solar do Barão, onde é instrutora desde 1980.
"Tive a ideia pensando em criar uma movimentação em torno da xilogravura, que andava um pouco de lado", diz ela, que sente falta do burburinho promovido pelas Mostras de Gravura, realizadas em Curitiba entre 1978 e 2000.
Com as xilos encomendadas aqui e acolá, Andréia reuniu material mais do que suficiente para organizar a exposição Autorretratos, em cartaz no segundo andar da Casa Andrade Muricy. Ali estão 111 retratos ensimesmados feitos em xilogravura por gravuristas, pintores, escultores, grafiteiros, videomakers, performers, a atriz Pagu Leal e até uma bailarina! Por que não, já que o linóleo, um tipo de borracha utilizada para fazer gravuras, também garantiu a Juliane Engelhardt piruetas seguras pelos palcos durante 25 anos. (Além da singela gravura "E Segue", em que se retrata sobre a casca de um caramujo, a gravurista/bailarina exibe outras 15 obras em uma pequena mostra no piso dos cinemas do Shopping Mueller).
A linoleogravura, aliás, pela dificuldade de se encontrar boas madeiras hoje em dia, é a única exceção permitida nesta exposição que, em tempos de bits e bytes, homenageia a xilo, a mais antiga técnica utilizada para multiplicação de provas, a que se seguiriam a imprensa, a litografia, a serigrafia, o off-set e os programas digitais. O artista Rettamozo "jogou sujo": em vez da permitida linoleogravura, usou raspas de linóleo para criar um "autorretrato autocolante", ou seja, um banner colado em um porta-retrato, quer dizer, uma porta do museu.
Logo ao lado, a figura de uma artista remete aos autorretratos de Frida Kahlo e também às fotos de família que figuram na parede das típicas casas de avó: é Mazé Mendes, pintora contemporânea, que se coloca em preto e branco sobre fundo sanguíneo, envolta por moldura oval. Como ela, outras artistas se colocaram com delicadeza na tela como Lahir Ramos, com a franja lançada desafiadoramente sobre um dos olhos, e Everly Giller, cercada pelo sol e a lua em aquário. Mais melancólica é a visão de si mesmo de João Osório Brzezinski.
Impossível citar todos os 111 rostos que encaram com olhos propositivos o público em Autorretratos. Há artistas muito jovens, como os grafiteiros Thiago Syen e Silvio Rodolfo e membros do coletivo Interluxartelivre como Juan Parada. "O grafite está muito ligado à gravura, os grafiteiros usam a serigrafia, o estêncil", diz Andréia.
Ela afirma ter se surpreendido ao ver obras tão diversas e que tratam a xilo de modos inovadores. "C. L. Salvaro, por exemplo, criou uma obra com caráter superatual, feita em policromia a laser na madeira, mas impressa de modo tradicional", conta.
A gravurista Carmen Carini se refletiu em um avental de mamografia. Denise Bandeira preferiu se ver em um par de Havaianas. Há até mesmo um vídeo, em que Daniel Duda se expõe trabalhando em seu autorretrato no ateliê.
Andréia destaca a presença de inúmeras obras que se aproximam propositadamente da xilogravura tradicional como a de Carlos Túlio. "Há nela o preto e branco e a luz típicos da xilogravura", diz. Existem ainda obras de fora, como a do esloveno Jacob Klemencic, ou que estiveram fora, como é o caso da série de três gravuras de impacto do escultor Elvo Benito Damo, exibida em um trienal de gravura na Cracóvia e, em seguida, na Alemanha.
Apoio
Andréia Las pretende reunir todas as faces em um catálogo aprovado no edital da Lei de Mecenato Subsidiado da Fundação Cultural de Curitiba. "Estamos aguardando o patrocínio de alguma empresa interessada", avisa. Aos distraídos, um aviso: a artista espalhou alguns discretos autorretratos pelas salas da exposição. Para vê-los, será preciso encontrá-los.
Serviço:
Autorretrato, na Casa Andrade Muricy (Al. Dr. Muricy, 915), (41) 3321-4798. Terça-feira a sexta-feira, das 10 às 19 horas, sábado e domingo, das 10 às 16 horas. Entrada franca. Até 27 de fevereiro.
Deixe sua opinião