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 | Ilustração: Robson Vilalba
| Foto: Ilustração: Robson Vilalba

Nos processos, distorções do começo ao fim

Não bastasse a afronta a direitos humanos elementares, a prática de tortura distorce as investigações para se chegar ao que de fato ocorreu num crime, por exemplo: novas vítimas são feitas e os verdadeiros responsáveis muitas vezes ficam impunes, num processo que parte da sociedade veladamente autoriza e aplaude mas em que, ao final das contas, todos saem perdendo

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Coberto da cabeça à cintura por um saco de lixo que lhe esgotava todo o ar, o suspeito ainda levou uns socos na cara e chutes na costela até apagar. Encarava o suplício pelo quarto dia seguido numa "salinha" sob a custódia do Estado – o mesmo que constitucionalmente lhe garante "integridade física e moral". "Acho que matamos o cara", pôde ouvir. Um choque elétrico, no entanto, mostrou que a sevícia ainda podia prosseguir: "Se você mentir e falar que não foi você, vai ser pior". Teve o rosto enfiado num formigueiro (‘entrava formiga até pela orelha’), não aguentou mais: "Fui eu".

O relato, ainda sob apuração de veracidade, é de um dos quatro inicialmente acusados de participação na morte de Tayná Adriane da Silva, de 14 anos. O caso ganhou notoriedade nacional não só pela brutalidade de que foi vítima a garota de Colombo, mas também pela suspeita de que a investigação foi maculada por uma prática que persiste viva em alguns porões a saciar a sede justiceira de parte da sociedade brasileira: a tortura.

"Vivemos numa sociedade da segurança, temos que exterminar os outros", define Cecília Coimbra, pesquisadora do assunto pela Universidade Federal Fluminense e uma das fundadoras do Grupo Tortura Nunca Mais. "A sociedade é massivamente levada a dizer que umas pessoas são mais perigosas que outras, identificadas geralmente pela pobreza, por questões sociais. Há ainda uma sucessão histórica de teorias racistas, eugênicas e de higienismo para corroborar que onde está o pobre, está a violência, o perigoso. Você julga o sujeito não pelo que ele fez, mas dependendo de sua natureza. Isso justifica prisões, tortura."

Ativista política, a própria Cecília foi um dos presos e torturados no auge dos anos de chumbo da ditadura militar. Na história recente brasileira, o período foi crucial para consolidar a violência arbitrária como instrumento institucionalizado de anulação de quem representasse algum perigo.

Coação

Um dos principais ativistas da época, o reverendo Jaime Wright (1927-1999), curitibano, chegou a listar 285 diferentes formas de tortura nos porões da ditadura. Sabia, contudo, que a prática estava impregnada havia muito tempo na realidade brasileira, conforme disse em entrevista à extinta revista Vinde, cerca de duas décadas atrás: "Essa tortura tornou-se endêmica, antes e durante a ditadura, e continua assim até hoje. Tanto é assim que na delegacia mais próxima, possivelmente nesta hora, há alguém sendo torturado. A tortura continua sendo nas delegacias o instrumento mais eficaz de se extrair uma ‘confissão’ também de se conseguir uma promoção para o torturador."

A legitimação da coação estatal chamou a atenção de Gorete Marques, socióloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo. Na série de processos contra acusados de tortura que pesquisou, notou que o peso das versões dos envolvidos variava conforme suas posições. "Quando o agressor era um pai, por exemplo, ele era constantemente contestado e a palavra da vítima era valorizada. Agora, quando se tratava de agente do Estado, a vítima tinha a palavra sempre contestada e a versão oficial ganhava peso, mesmo se perícias mostrassem o contrário." Em seu estudo, 25% dos réus civis – não agentes públicos – acabaram absolvidos; entre agentes do Estado, 70%.

O banimento, ao menos formalmente, da tortura chega a ser citado por especialistas em direito como única regra consensual em toda a comunidade internacional. No dia a dia de países como o Brasil, porém, enfrentar o problema tem exigido esforço contínuo para uma mudança de cultura, no que a formação de comissões da verdade e do recente Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura se lançam como instrumentos.

Para a socióloga da USP, urge impedir a "continuidade do uso da violência por agentes que têm, ao contrário, competência de impedir atos de violência". Além disso, ressalta Gorete Marques, cabe repensar: "Que tipo de sociedade a gente quer construir?". Cecília Coimbra, do Tortura Nunca Mais, é otimista. "Tenta-se exercer o poder sobre a vida, só que existe a potência da vida. Nada é absoluto, total, homogêneo. A gente aceita esse controle, mas... será que o Estado é tudo isso mesmo em nosso favor?"

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