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Uma geração na estrada

As andanças de Jack Kerouac voltam a ser faladas, agora que On the Road/Na Estrada virou filme, 55 anos depois da publicação do livro. Foram quatro viagens, a maior parte num Hudson ’49, rasgando os EUA de costa a costa, levando a Intelligentsia novaiorquina a San Francisco, onde acontecia a explosão cultural da San Francisco Renaissance, que contou com o impacto dos beats (foi lá, em 1955, que Allen Ginsberg leu em público seu poema Howl/Uivo). A livraria City Lights Bookshop, do poeta Lawrence Ferlingheti, publicou Howl e a maioria dos textos beats. Além de SF e NY, Denver, Colorado, entrou para o mapa da Geração Beat, por ser a cidade natal de Neal Cassady, imortalizado por Kerouac em On the Road como Dean Moriarty. Um dos primeiros postos avançados beats foi Tânger, no Marrocos, exílio voluntário de Paul Bowles, compositor e romancista americano, autor de O Céu Que Nos Protege (Bowles, aos 80 anos, aparece como narrador na adaptação de Bertolucci para o cinema). A cidade do México, última parada na odisseia automotiva de Kerouac, também se tornou uma cidade beat, batizada com sangue no trágico episódio em que, brincando de Guilherme Tell, Joan, a mulher de William Burroughs, equilibra uma taça de martini sobre a cabeça e é alvejada na testa por um tiro do marido embriagado. Burroughs viajou pela América do Sul para pesquisar os efeitos de uma planta chamada yage – a conhecida ayahuasca – experiência que descreveu no livro Cartas do Yage.

Burroughs, Ginsberg e Corso instalaram-se em Paris, no início dos anos 60, num hotel decrépito que ficou conhecido como Beat Hotel. Kerouac, o "viajante solitário", foi a Paris e à Bretanha para investigar as origens de sua família, mas a incursão se resumiu a um longo porre, descrito em Satori em Paris. Outro ponto de encontro beat em Paris foi a livraria Le Mistral, depois Shakespeare & Co. Na rive gauche, de frente para a catedral de Nôtre Dame, a livraria dava guarida a mochileiros em trânsito para as ilhas gregas, a Índia ou o Katmandu, contanto que lessem um livro para pagar a hospedagem. A aventura errática dos beats foi um subproduto da gasolina barata e da prosperidade absurda dos anos 60. Os beats e seus sucessores, os hippies, vicejaram das sobras desta sociedade superabundante. Os hippies afundaram nos decibéis do rock. Já os beats souberam eternizar sua busca num punhado de livros. Como afirmou Kerouac: "Se a crítica é ‘para onde vocês estão indo?’ a resposta é ‘Nós chegaremos lá.’"

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No começo foi a literatura infantojuvenil, o Império da Fantasia: o Velho Oeste de Winnetou, as agruras do Curdistão bravio, a África aventureira de Tarzã, a Ásia de Sandokan, o Tigre da Malásia; o Mississipi de Mark Twain. Depois, já no final da adolescência, trocamos os livros da Terramarear pelos da Coleção Nobel: surgem as areias surreais de O Deserto dos Tártaros (Dino Buzzatti), de O Céu Que Nos Protege (Paul Bowles) e de O Estrangeiro, de Camus; o Congo implacável de O Coração das Trevas (Joseph Conrad); a América inclemente da Corrida do Ouro de Jack London; a Ásia presa milenar do Ocidente em A Condição Humana (André Malraux) e O Americano Tranquilo (Graham Greene); e, ainda Conrad, em Nostromo, nos traz sua fábula de revolução e corrupção na América Latina. O filósofo francês Montaigne, que em 1774 publicou seu diário de viagem à França, Alemanha, Áustria, Suíça e Itália, sintetizou: "O homem faz a viagem, a viagem faz o homem." É do que vamos falar aqui: não meros relatos de viajantes, mas literatura que surgiu da viagem — e não teria existido sem ela.

Camões é um bom começo. Boêmio, enamorado, foi curar a dor-de-cotovelo no exército na África e perdeu um olho em batalha. De volta a Portugal, feriu um servo do Paço e foi preso. Perdoado, partiu para o Oriente. Sem as viagens, jamais teria escrito Os Lusíadas (1572). Acabou os dias mal de vida – como a maioria dos escritores – com uma pequena pensão da Coroa.

Na Europa, uma grande inspiração foi o chamado Grand Tour (Grande Excursão). Nascido na Inglaterra a partir de 1600, era a visita cultural que os jovens aristocratas faziam aos centros da cultura clássica, como Itália e Grécia, passando por Paris. Esse rito de passagem estendeu-se a jovens de outros países setentrionais e também a americanos, no século 19, quando os transportes se expandiram, com as ferrovias aos navios a vapor.

Já em 1786, Johan Wolfgang von Goethe, em crise conjugal, partiu para a Itália. Autor famoso, viajou sob pseudônimo, conhecendo Verona, Veneza, o Lago de Garda, Roma, Nápoles e a Sicília. Goethe encantou-se tanto pelas obras de arte da antiguidade clássica que se dedicou por um tempo ao desenho. De volta à Alemanha, retomou o trabalho de escritor e tudo o que fez a seguir foi profundamente marcado por seus dois anos de Itália.

Sem volta

A santíssima trindade do romantismo britânico também embarcou no Grand Tour – nesse caso, numa viagem sem volta. O poeta John Keats morreu em Roma de tuberculose, aos 25 anos. Percy Bysshe Shelley morreu afogado aos 30 anos no golfo de La Spezia, Itália, quando seu veleiro naufragou em 1822. Nos seus bolsos foram encontrados um volume de Sófocles e outro de Keats. Seu coração foi levado à viúva pelo amigo Lord Byron e o corpo cremado na praia. As cinzas de Shelley foram enterradas no Cemitério Protestante de Roma, que recebera um ano antes os restos mortais de Keats. Já Lord Byron foi lutar pelos gregos contra os turcos e morreu de febre reumática no campo de batalha de Missolonghi, em 1824, aos 36 anos. Toda a obra destes poetas está profundamente impregnada da cultura mediterrânea. No verão chuvoso de 1816, numa mansão alugada por Byron nos arredores de Genebra, Shelley, sua mulher Mary, o médico John William Polidori e o anfitrião entregaram-se a um concurso de histórias fantásticas. Nasceu daí o romance de Mary Shelley, Frankenstein; e Polidori escreveu The Vampyre, o livro que inaugurou um filão draculesco que faz sucesso até hoje.

A esta altura, o Império Britânico – "sobre o qual o sol nunca se põe" – espalhava sobre o planeta escritores de todos os matizes. O escocês Robert Louis Stevenson, autor de A Ilha do Tesouro (1883) – um dos livros mais lidos de todos os tempos – correu o mundo em busca do clima ideal para seus pulmões doentes. Seu primeiro livro foi sobre uma viagem de canoa entre a Bélgica e a França. Passou um tempo nos Estados Unidos, em 1888 alugou um veleiro, partiu com a família para o Havaí, onde ficou amigo do rei (Kalakaua), e fixou-se em Samoa, onde morreu em 1894, aos 44 anos. O mar também atraiu Joseph Conrad, nascido na Polônia, que por 20 anos correu o mundo nas marinhas mercantes francesa e britânica. Aos 36 anos, casado com uma inglesa, radicou-se na Inglaterra e passou a escrever sobre suas experiências de viagem. Sinal dos tempos, esse polonês se tornaria um dos maiores estilistas da língua inglesa, com histórias passadas em locais como os mares do Sul, a Rússia pré-revolucionária, o Congo, a imaginária república latino-americana de Costaguana e até mesmo a Londres vitoriana dos anarquistas. Através de seus personagens, Conrad mergulhou fundo no estudo da condição humana: "A crença em uma origem sobrenatural da maldade não é necessária. O homem por si só é capaz de toda maldade imaginável."

Conrad fundou uma tradição, a dos Tales of Hearsay, título de um de seus livros. Eram inconfidências entreouvidas nos pontos de encontro da sociedade colonial – de bares de marinheiros a salões e cafés da elite – que se transformavam em fascinantes relatos sobre destinos marcados. Entre os cultores desse gossip literário estão os britânicos Rudyard Kipling, Somerset Maugham e Noel Coward que, como Conrad, em diferentes épocas, se hospedaram no lendário Raffles Hotel de Cingapura. Rudyard Kipling dizia: "Existem dois tipos de homem no mundo: aqueles que ficam em casa e os outros." Ele já nasceu entre os outros, em Bombaim e, depois de breves estudos na Inglaterra, voltou à Índia para iniciar a carreira de jornalista. Das histórias entreouvidas, escreveu a novela O Homem Que Queria Ser Rei, filmada por John Huston. Poeta, autor de histórias infantojuvenis (Mowgli, o Menino-lobo, O Livro da Jângal), Kipling tornou-se o grande cronista do colonialismo britânico (quem não ouviu seu poema de autoajuda "If/Se?"). Primeiro Prêmio Nobel de Literatura (1907) em língua inglesa, continua até hoje o mais jovem agraciado.

O mesmo DNA corre ao longo dessa vertente da ficção inglesa. Na série sobre o espião Ashenden, Somerset Maugham trata, em O Traidor (1927), de um agente duplo que fornecia informações inventadas. Graham Greene ampliou a ideia em Nosso Homem em Havana (1958) e John le Carré a transformou em thriller contemporâneo em O Alfaiate do Panamá (1996). Maugham, Greene e Carré não só tiveram essa história filmada, como a maior parte dos seus livros foi parar na tela. O anglófilo Henry James e o anglófobo D.H. Lawrence também tiraram sofisticadas narrativas de suas viagens, enquanto T.E. Lawrence (Os Sete Pilares da Sabedoria) foi mais longe: como Lawrence da Arábia, firmou a hegemonia britânica no mundo árabe.

"A gente sempre vai mais longe quando não sabe para onde vai," dizia Cristóvão Colombo, o descobridor da América. Sem saber aonde ia, Herman Melville tirou, dos mares revoltos que singrou, um dos maiores mitos da literatura: a baleia branca Moby Dick (1851). Thoreau, Hawthorne, Whitman foram outros americanos que colocaram em livro suas experiências da estrada, bem como o incrível Jack London, que cobriu a guerra russo-japonesa e a corrida do ouro, descrita nos romances, O Chamado Selvagem e Caninos Brancos, ambos narrados por um cão.

A língua francesa também escreveu boa parte dessa crônica: Jean-Jacques Rousseau, com seus Devaneios de um Caminhante Solitário (1776); Stendhal, cônsul da França em Livorno, autor da magistral Cartuxa de Parma (em Florença, ele foi acometido pela Síndrome de Stendhal, doença provocada pela exposição excessiva à beleza artística); Flaubert, que criou Salambô inspirado por uma longa viagem ao Oriente; e o multifacetado Júlio Verne, com suas histórias fantásticas, culminando com o fabuloso A Volta ao Mundo em 80 Dias. Se Verne foi o pai da ficção científica, um francês pairou literalmente acima dos demais. Antoine de Saint-Exupéry, como piloto de avião, viajou por todo o planeta e, escritor sensível, descreveu admiravelmente sua experiência única. Pascal afirmou: "Toda a infelicidade dos homens vem de uma só coisa: não saber ficar em repouso num quarto." Saint-Exupéry, ao contrário de Pascal, adorava "o silêncio eterno dos espaços infinitos." E ele, que viu tudo do alto, também deixou sua frase para a História: "O essencial é invisível aos olhos."

Do pau-brasil à soja

O primeiro texto escrito no Brasil é fruto de uma viagem: a carta do escrivão Pero Vaz de Caminha. Essa "carta de achamento" deu início a um filão que durou séculos: as impressões de viajantes estrangeiros sobre o país. Um caso singular foi o do Padre Antônio Vieira, nascido em Lisboa, morto em Salvador da Bahia, que viveu 56 dos seus 89 anos no Brasil, tendo, além da residência em Portugal, morado seis anos em Roma. Vieira viveu no século 18, mas foi um homem à frente do seu tempo, nas ideias e no próprio estilo literário, marcados profundamente por suas viagens.

A maioria dos poetas da Inconfidência Mineira estudou em Coimbra, alguns conheceram outros países do Velho Mundo. Cláudio Manuel da Costa teria frequentado uma sociedade secreta da Baviera, os Illuminati, que influenciou várias revoluções. Já o romantismo brasileiro se voltou muitas vezes para os modelos europeus. Antonio Gonçalves Dias foi estudar em Coimbra e lá escreveu o famoso poema Canção do Exílio: "Minha terra tem palmeiras,/ Onde canta o Sabiá;/ As aves que aqui gorjeiam,/ Não gorjeiam como lá." Em 1864, Gonçalves Dias voltava da Europa – onde foi tratar da saúde, sem sucesso – quando o navio Ville de Boulogne naufragou na costa do Maranhão; salvaram-se todos, exceto o poeta, que, esquecido agonizante em seu leito, se afogou. Morte ainda mais insólita teve o jornalista Silva Jardim, grande ativista da Abolição e da República. Em 1891, aos 30 anos de idade, quando visitava o Vesúvio, em Nápoles, foi tragado por uma fenda que se abriu na cratera do vulcão.

No século 20, vários escritores brasileiros viveram em países estrangeiros, como diplomatas de carreira, ou nomeados, entre eles Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Vinicius de Moraes, Fernando Sabino e Rubem Braga. Como conferencista convidado nos EUA, durante anos, Erico Verissimo relatou a experiência em livros como Gato Preto em Campo de Neve. Em 1913, Manuel Bandeira passou um ano num sanatório da Suíça, onde conheceu o poeta Paul Eluard e sua mulher Gala, que depois casaria com Salvador Dali. (Na mesma época, num sanatório vizinho, em Davos, Thomas Mann escrevia seu romance A Montanha Mágica.) O Partido Comunista também deu uma mão: Jorge Amado publicou O Mundo da Paz (1951), sobre suas viagens à União Soviética e Albânia; em 1952, Graciliano Ramos visitou a Checoslováquia e a União Soviética: suas crônicas de viagem sairiam em Viagem (1954). Também militante, Patrícia Galvão, a Pagu, mulher de Oswald de Andrade, visitou como jornalista os Estados Unidos, o Japão e a China. Entrevistou Sigmund Freud e assistiu à coroação de Pu-Yi, o último imperador chinês. Foi por intermédio dele que Pagu conseguiu sementes de soja, que seriam introduzidas em nossa agricultura. Mais do que qualquer movimento literário ou político, Pagu promoveu – quase por acaso – uma das maiores revoluções sócioeconômicas do Brasil.

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