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Martín Caparrós, para fugir da ditadura militar, exilou-se em Paris e Madri | Alejandro Guyot/Divulgação
Martín Caparrós, para fugir da ditadura militar, exilou-se em Paris e Madri| Foto: Alejandro Guyot/Divulgação

Os períodos ditatoriais que pontuaram a história da América Latina no século 20 são uma fonte quase inesgotável de assuntos para filmes, livros e documentários. Afinal, reside nesse período elementos como disputas políticas, intrigas internacionais e os dramas de uma juventude carente de perspectivas e medidas, que pegou em armas na esperança utópica de tomar o país e mudar o mundo a partir de suas convicções de uma sociedade igualitária.

O argentino Martín Caparrós, entretanto, adicionou a essa complexa teia de relações o peso que leva o passado na cabeça de um ex-militante, 30 anos após os episódios que fizeram um dos períodos mais sangrentos da história da Argentina e uma das ditaduras mais violentas da América do Sul.

Em A Quem de Direito, Caparrós assume a voz amargurada e apática de Carlos, um ex-líder da resistência que perdeu sua esposa, Estela – também militante – em um chupadero, um centro clandestino de detenção e tortura. Sem saber de seu paradeiro, Carlos é atormentado pela angústia da perda incerta. A falta de definição, de um ponto final na vida de Stella, o faz buscar algum resquício de concretude. Para isso, tenta descobrir quem foram as pessoas que deram cabo a existência de seu amor, enquanto deseja – sem admití-lo jamais – que Estela esteja viva.

A busca de Carlos, entretanto, é um pouco envergonhada, pois supõe uma esperança considerada tola por ele próprio. Mais do que isso, é uma busca inconsciente: Carlos luta com sua própria consciência em tentar entender o que foi sua juventude, e o que exatamente pretendia com sua resistência política e seus ideais socialistas em termos práticos. Tenta fazer, por isso, um acerto de contas com Estela, com quem conversa em pensamento, e para quem a morte no chupadero pode ter sido um trágico erro, um fato desnecessário.

Desapegando-se aos poucos do mundo ao mesmo tempo em que um câncer lhe coloca numa contagem regressiva, Carlos, com má vontade, divide suas angústias com Juanjo, que fora seu colega de resistência e hoje é um político progressista – "Passou para o outro lado", como diz o protagonista. Juanjo reúne os antigos colegas para celebrar um passado que ninguém sabe ao certo se realmente há alguma memória digna de celebração. O que resta é um encontro vazio que, de outra maneira, nunca aconteceria entre aquelas pessoas tão diferentes um do outro.

Para complicar ainda mais o conflito interno em que vive, Carlos mantém uma relação aberta com Valeria, uma mulher na faixa dos 30 que usa um piercing – reflexo de uma geração que se recusa a envelhecer e se mantém alheia aos feitos da geração de Carlos. Valeria insiste em discutir os ideais do protagonista e levantar questões que o incomodam justamente por não ter uma resposta. Carlos tenta entender a si mesmo enquanto defende seu eu passado.

Se Carlos tenta compreender a si em A Quem de Direito, é verdade também que o autor usa o livro para este mesmo meio. As dúvidas existenciais levantadas por Martín Caparrós na mente de seu personagem são legítimas: ele próprio viveu a ditadura, e exilou-se em Paris e Madri entre 1976 e 1983, período em que estudou história na universidade de Sorbonne. As inquietudes de quem viveu o período e a dificuldade de lidar com o presente e criar empatia com uma geração que, para Carlos, representa o inevitável estado de inércia intelectual em que se encontra a Argentina, são os elementos que tornam A Quem de Direito um tratado tão intenso e peculiar dessa geração que viu sonhos e convicções serem desfeitos.

Serviço

A Quem de Direito, de Martín Caparrós. Tradução de Heloisa Jahn e Lucia Maria Goulart Jahn. Companhia das Letras, 328 págs. R$ 49,90.

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