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Ao escolher narrar um romance do ponto de vista de uma criança ou de um adolescente, o romancista assume um risco óbvio – e nada desprezível: soar inverossímil. Ou pior: irritantemente ingênuo (quando se sabe que crianças e adolescentes têm lá as suas manhas, hoje mais do que nunca) ou artificialmente maduro (e nesse caso revela-se o adulto por trás do personagem, quebrando-se o encanto, caindo a máscara da ficção, que é o que um romance, afinal, deveria ser).

Desbravando – ainda mais perigosamente – o terreno da memória pessoal e da autobiografia, o jovem escritor britânico David Mitchell, porém, mostra-se totalmente à altura da empreitada em Menino de Lugar Nenhum (Cia. das Letras) – duplo êxito, ressalte-se, já que o belo trabalho do tradutor, Daniel Pellizzari, reproduz à perfeição a voz narrativa do original em inglês.

O narrador do romance – e aparente alterego do autor – é Jason Taylor. Nas primeiras páginas do livro, Jason está a cinco dias do aniversário de 13 anos – ou seja, prestes a abandonar o território de sonho e pesadelo da infância; já é um adolescente "calejado", um ano depois, quando a história não exatamente termina, mas é preciso ir em frente, mudar, amadurecer – rumo à dura realidade da vida adulta.

Entre partida e destino, nessa estação que é, justamente, o "lugar nenhum" do título e para a qual se criou, mais recentemente, o eufemismo meio tolo, meio condescendente de "pré-adolescência", vive o protagonista: um menino tentando sobreviver às freqüentes discussões dos pais, à almejada e invejada independência da irmã mais velha e às investidas cruéis das quais é vítima na rua e na escola, embora ainda não se falasse em bullying como caso de polícia, como hoje.

Jason entra na adolescência no ano em que a Inglaterra vai para a guerra, nas distantes Malvinas, contra a Argentina; no momento em que Margaret Thatcher, a Dama de Ferro nos primeiros anos de mandato como primeira-ministra, consolida sua popularidade – apesar do arrocho na classe trabalhadora inglesa e da demolição sem dó do Estado, que durante décadas garantiu aos britânicos o melhor serviço público do mundo. Era 1982 e a Inglaterra, ao som de Duran Duran e Adam Ant, vivia a explosão da cultura de rua com a qual qualquer um que tenha crescido nessa década, mesmo no Brasil, certamente se identificará.

Entre punks tardios e darks recém-chegados, Jason joga futebol na rua, improvisa um pingue-pongue na mesa da cozinha, com livros de capa-dura servindo de rede e raquete, e vai a festinhas na esperança de dar o primeiro beijo. Coisa que, evidentemente, aquele indefectível primo mais velho (quem não teve um?) já fez – e muito mais, vangloria-se ele.

Mulheres: quem é capaz de entendê-las? – especialmente nessa idade. "Garotos são filhos-da-puta, mas são filhos-da-puta previsíveis. Nunca dá pra saber o que garotas estão pensando. Garotas são de outro planeta", confessa Jason. Fumar o primeiro cigarro ou quebrar a cara buscando popularidade, o que quase sempre quer dizer provar sua macheza aos meninos considerados "casca-grossa" (narradores adolescentes adoram gírias) – moleza, perto do verdadeiro mistério: mulheres.

Só que Jason passa boa parte do livro fracassando em ambas as coisas – e mais algumas, como na dificuldade de dizer (ou, pesadelo dos pesadelos, ler em voz alta na sala de aula) umas poucas frases sem "travadas" diante de certas palavras, ou em se fazer notar por aquilo em que tem talento, como a poesia – "coisa de bicha", segundo a turma. Para não falar da família, sempre uma complicação a mais.

"Garotos que são azucrinados agem como se fossem invisíveis pra reduzir as probabilidades de serem azucrinados. Pessoas que travam agem como se fossem invisíveis pra reduzir as chances de serem obrigadas a falar algo que não conseguem. Garotos com pais que vivem discutindo agem como se fossem invisíveis pra não darem início a outra briga. Sou Jason Taylor, o Garoto Triplamente Invisível."

Não chega a ser novidade o narrador infantil ou adolescente na safra mais recente de romancistas britânicos: o livro do ano de 2003 foi O Estranho Caso do Cachorro Morto (ed. Record), de Mark Haddon – cujo protagonista, além de ter 15 anos, sofre de uma espécie rara de autismo. Haddon foi tão convincente ao criar a voz de Christopher que, a partir dele, alguns autores e romances nessa linha já foram classificados de "haddoneanos", em referência ao sobrenome do também jovem autor.

Outros que seguiram a trilha redescoberta por Haddon – e talvez inaugurada, de fato, pelo norte-americano J.D. Salinger e seu O Apanhador no Campo de Centeio – foram William Sutcliffe (do assustador Má Influência, ed. Francis) e Matt Haig (do ainda inédito em português The Dead Father’s Club). Menino de Lugar Nenhum talvez seja, entre eles, o mais recheado de momentos para rir e chorar – a confissão rematada do difícil rito de passagem desse menino, mais do que verossímil, muito verdadeiro.

Serviço

Menino de Lugar Nenhum, de David Mitchell. Companhia das Letras, 472 págs., R$58.

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