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| Foto: Antônio Rilo / Divulgação

Encantado com Paraty (RJ), mas assustado com o frio, o angolano radicado em Portugal valter hugo mãe (que grafa seu nome e seus livros só em minúsculas) contou à Gazeta do Povo, com quem conversou durante a Flip, que termina amanhã, que ainda escreverá um livro sobre o Brasil.

Por que as minúsculas?

As minúsculas influem na variação da velocidade de leitura, elas obrigam o leitor a ser rápido. A diferença entre o fim de uma frase e o começo de outra parece se atenuar. Minha intenção com isso tem a ver com a oralidade, com o texto antes de ser escrito. Porque não falamos com maiúsculas.

O público responde bem ao seu estilo?

Há leitores que não chegam a ler porque se irritam com o fato de eu alterar a regra. Mas quem lê costuma dizer que no início fica mais perdido, mas depois compreende e sente uma vertigem e voracidade que levam a terminar o livro mais cedo.

Como foi o desenvolvimento desse estilo?

Trago as minúsculas desde a poesia, porque essa foi minha escola. Nela, essas alterações às regras são todas muito mais assumidas e aceitas. Quando escrevi o primeiro romance, já escrevia e assinava em minúsculas com a intenção de aproximar o poema de sua expressão natural. Para mim foi pacífico aceitar as minúsculas num texto de prosa. Naquela época em Portugal falou-se muito disso, e criou-se uma certa polêmica, se eu poderia ou não, se tinha direito, se fazia sentido. Mas há cada vez mais gente que compreende que o que importa de fato é o conteúdo.

Pelo contrário, até José Saramago elogiou seu trabalho... Ele lhe deu algum conselho?

Ele não era de dar conselhos. A relação que eu tinha com ele se tornou de admiração mútua, mas ele não se imiscuía na vida dos outros. Ocupava o seu lugar e permitia que os outros encontrassem o deles, sem ser dirigista. Só me alertou que as pessoas tentariam capitalizar de alguma forma meu trabalho. Ele disse: "Nunca escreva crônicas para um jornal ou uma revista sem vontade. O que tiver de fazer, faça pela vontade natural de ser escritor, nunca se deixe vencer pela oportunidade do dinheiro". Achei engraçado que ele dissesse isso, porque após vencer o Prêmio José Saramago [em 2007] fui muito aliciado e se tivesse aceitado todos os convites teria me dispersado e não poderia garantir qualidade ao meu trabalho. Creio que foi uma tentativa de me proteger, nunca de dizer o que eu deveria escrever.

E isso tem te ajudado?

Tento manter a lucidez, focar na escrita e levá-la como uma coisa séria. Quero ter segurança quando publico de que aquilo é algo muito honesto e que aquela é a qualidade de que sou capaz. Não significa que eu tenha que ser imediatamente um escritor brilhante como foi José Saramago ou outros.

É verdade que você não enviou A Máquina de Fazer Espanhóis ao Saramago, e por quê?

Sim, e ele acabou comprando o livro e lendo. Não enviei porque o livro conta uma história sem rodeios de um homem entre 84 e 86 anos, e ele estava com 87 anos quando publiquei. Achei que a expressão muito incondicional da velhice podia ser dura para quem atravessa essa fase da vida, e fui hesitando, e quando ele morreu, eu tinha o livro assinado na minha mesa. Fiquei muito triste de não ter tido coragem de enviá-lo. Depois, a [viúva de Saramago] Pilar fez umas declarações e eu soube que provavelmente esse foi o último livro que ele leu. Então, fiquei com um sentimento misto de tristeza e alegria.

Acredita que Saramago teve uma visão diferente da velhice daquela retratada no livro?

Sim. Mesmo doente e debilitado, ele nunca foi velho, tanto pelo seu espírito quanto pela relação que tinha com a Pilar. Tudo foi feito para que se mantivesse ativo tanto quanto possível. Esteve sempre envolvido, opinando, escrevendo, inclusive livros que outro escritor em sua situação já não escreveria. Caim é, sem dúvida, um acontecimento para lá do esperado. Quando morreu, deixou 30 páginas de um novo romance que estava escrevendo. Ele não teve com a velhice uma relação normal, ele a impediu tanto quanto possível.

A sua visão da velhice confere com a do livro?

Eu tenho certo medo da velhice porque me percebo muito frágil para enfrentar a atrocidade da decadência do corpo e do entorpecimento dos gestos. Por isso, creio que, se chegar a ser velho, estarei muito estragado e aflito. Ao longo da vida achei que iria morrer com 18 anos, depois com 33, depois com 40. Agora estou convencido de que, se não morrer com 40, morrerei com 100, mas me sinto pouco apto a envelhecer bem.

É um tema que incomoda...

Sim, e que requer cuidados, porque quando chegarmos a ser velhos seremos uma geração numerosa e o sistema de proteção social irá falhar. A minha geração tem dois filhos no máximo, não teremos quem cuide de nós, seremos muitos e abandonados. Essa será a questão dos próximos 20, 30 anos.

Seu livro no Brasil manteve diversas formas da grafia de Portugal. Você defende que os livros sejam publicados sem adaptação ortográfica?

Sim, acho importante que as línguas atravessem o oceano sem se mascarar, para que o diálogo aconteça. Senão, algum dia vamos ter que fazer tradução, porque vamos ser tão desconhecidos que ela será necessária. Só o hábito de ler o outro permitirá que continuemos a considerar esta a mesma língua. A edição de A Máquina de Fazer Espanhóis no Brasil mudou apenas a acentuação de algumas palavras, que em Portugal levam acento grave e aqui, circunflexo, mas não faz sentido alterar as expressões de alteridade, como "tu" por "você".

Você tem muitas outras atividades, como na música e na edição. Qual sua visão do papel do escritor na sociedade?

Me situo como posso, me interessa que meu trabalho possa ter importância. Não me interessa apenas a dimensão lúdica de uma obra, o livro não pode se esgotar nisso. O privilégio de ter voz, de criar um público, acarreta uma responsabilidade, e aquilo que levamos às pessoas tem de revestir-se de seriedade, mesmo que com humor e ironia. A gênese do trabalho tem que ser séria. Gosto do artista comprometido com alguns valores, em propor melhorias. Se a intenção for só ganhar dinheiro, não me interessa.

Como vê a crise financeira por que passa Portugal?

Como uma enorme porcaria, criada por uma economia circense. Portugal é um dos primeiros países a ser encurralado numa escalada que visa atingir a Espanha e colocá-la trabalhando para os grandes bancos.

A relação entre portugueses e espanhóis é um dos temas do seu livro. Ela é de amor e ódio?

É mais de dor de cotovelo, de cobiça. Vontade de ter o que os outros têm. A Espanha tem autoestima muito maior, e Portugal, muita melancolia de ter sido grandioso e ir se esvaziando.

Sua identidade com Angola, onde nasceu, é forte?

Saí de lá com dois anos, e tenho uma ideia muito iludida do país, e vontade muito grande de conhecê-lo. Tenho um romance pensado para escrever depois dessa visita, uma história que quero contar. Mas primeiro precisaria respeitar as pessoas, conhecê-las para poder falar delas. Tenho uma saudade de algo de que não me lembro, uma memória escondida. Percebi isso quando vim ao Brasil pela primeira vez, há 11 anos, e comi alguns frutos e senti odores da vegetação que achei familiares. Chequei com meus pais e, sim, era árvores que tínhamos perto de casa e que encontrei aqui. O Brasil para mim é uma máquina para recuperar essa memória tácita da infância.

Já pensou em escrever sobre o Brasil?

Já, pensei muito. Mais tarde ou mais cedo vai acontecer. Fiquei com uma relação forte com a Ilha da Conceição, nos arredores de Niterói [RJ] e acho que um dia vou voltar e escrever um romance situado ao pé do morro e do Bar do Peixe, onde as pessoas pagam o que bebem e comem grátis. Nunca vou esquecer aquelas pessoas. Me chamavam de "o portuga".

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