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Muito cedo surgiu em mim o desejo de estudar cinema. Na época, movido pela paixão por cineastas do Novo Cinema Alemão, fui estudar o idioma com o sonho de viajar à terra de Werner Herzog e Wim Wenders para me tornar cineasta. Tinha familiaridade escolar com o inglês e admirava a sonoridade do francês. Já o espanhol, como acontecia e ainda acontece hoje para muitos, era motivo de preconceito. Música ou cinema em espanhol, nem pensar. Curiosamente o destino acabou me levando a estudar a sétima arte na Escuela Internacional de Cine y TV de Cuba. Em contato, por dois anos, com nomes importantes do cinema mundial – principalmente latino-americanos –, e convivendo com colegas de vários paises hispânicos, tive o privilégio de conhecer muito da cultura de países tão diferentes como México, Argentina ou Cuba, ao mesmo tempo tão semelhantes ao nosso.

Um dos professores que tive, o documentarista chileno Patrício Guzmán, tem uma frase famosa que diz: "Un país sin cine documental es como una família sin álbum de fotografias."

Considerado um dos mais importantes documentaristas da atualidade, Guzmán registrou toda a história política do Chile desde o final do governo Allende até os nossos dias, em documentários como A Batalha do Chile, Memória Obstinada, O Caso Pinochet e Salvador Allende. Em filmes como La Cruz del Sur, sobre a religiosidade na América Latina, Guzmán desenvolve um estilo documental no qual soube explorar a forma narrativa do cinema de ficção. Ele percebeu que um documentário, da mesma forma que um filme de suspense ou uma comédia, tem que manter a curiosidade do espectador; precisa ter uma curva dramática.

No Brasil, em filmes como Edifício Master, Eduardo Coutinho soube identificar e explorar muito bem o poder de uma história bem contada. Costura seus filmes com depoimentos de pessoas que têm o talento inato de falar de suas vidas de forma interessante.

Cito esses exemplos da influência da dramaturgia de ficção no cinema documental, porque percebo que o cinema latino-americano que se faz hoje – e que agrada tanto – talvez esteja percorrendo o caminho inverso. A obra de alguns jovens cineastas, como o argentino Daniel Burman (O Abraço Partido) ou os uruguaios Pablo Stoll e Juan Pablo Rebella (Whisky), e outros nem tão jovens, como o argentino Carlos Sorín (Histórias Mínimas, O Cachorro), emociona gente do mundo inteiro com sinopses como: um velhinho em busca de seu cachorro perdido em algum lugar da Patagônia, os conflitos do dono de uma pequena fábrica de meias de Montevidéu com seu irmão ou a tentativa de um jovem judeu, que trabalha com a mãe em uma loja de lingeries, de conhecer o pai.

Os autores destes filmes, acima de qualquer outra habilidade, tem sabido explorar a mais importante fonte de recursos para histórias que nós podemos ter: nossa experiência pessoal e nossa forma própria de olhar o mundo a nossa volta. Tratando de temas e contextos que conhecem muito bem, esses diretores e roteiristas "imprimem verdade" nos seus fotogramas de ficção, e falam de questões humanas universais por meio de histórias regionais.

A influência do cinema documental também se faz presente na escolha das locações, na direção de arte realista e na escolha e direção dos elencos. Trabalha-se com atores que são próximos da realidade dos personagens (lembrando a diferenciação que o cineasta francês Robert Bresson fazia entre o ator, que "parece", e o modelo, que "é" – e ele preferia o segundo), ou por utilizar atores não profissionais, como no caso do filme O Cachorro, de Sorín. E, claro, é notória a preocupação de contar bem a história que se narra. Boa parte dos melhores diretores latinos da atualidade percebeu que ser autor não é sinônimo de extravagância e exibicionismo de linguagem.

A unidade da obra do autor cinematográfico pode se revelar pela capacidade que este tenha de espelhar-se nela, de embutir nos filmes seus valores, seu modo de observar o mundo, os seus próximos e a si mesmo. Claro que as preocupações formais são importantes, mas o uso impecável da linguagem cinematográfica por si só, constrói um corpo que funciona bem mas não tem alma. Felizmente, esta maneira dos nossos vizinhos de fazer cinema tem influenciado vários novos realizadores brasileiros.

Retomo a frase de Patricio Guzmán, quando ele diz que um pais sem documentários é como uma família sem álbum de fotografias. Uma comunidade sem um cinema de ficção que lhe sirva de espelho, onde esta olhe a si mesma sem enganos e subterfúgios, é como a família que não conta histórias, que não brinca, e acaba deixando seu álbum incompleto e descolorido.

Luciano Coelho – cineasta e coordenador do Projeto Olho Vivo.

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