
Fim de tarde em Oslo, Noruega. Edvard Munch passeia com dois amigos ao pôr-do-sol. Súbito, o céu fica vermelho-sangue. Ele reclina-se ofegante na mureta da ponte. Há sangue e línguas de fogo sobre a cidade inteira. Os amigos seguem, ele fica. Mais tarde, Munch dá cores expressionistas àquele momento de angústia. Não à toa, O grito rivaliza com a Mona Lisa em popularidade, talvez porque depois daquele dia de 1893 o pintor soube dizer com pincéis o que toda a humanidade sempre sentiu, mas ninguém jamais soubera explicar de forma tão lúcida. Na angústia de Munch, a tela é o espelho que reflete nossas angústias, eis que somos humanos.
O que Munch teria sentido naquele instante crucial? Um vazio no peito, uma profunda melancolia, uma dor não física, sensação de insegurança, de ressentimento? Teria tido lembranças traumáticas que o dilaceraram por dentro? Teria sido tomado por um estado de aflição, de sofrimento sem causa aparente? Seja o que Munch tenha sentido, isso sempre foi e sempre será experimentado por todos os homens, em todas as culturas, a qualquer tempo. A angústia é inevitável. Ela nos toma de assalto diante de nossas incertezas, da necessidade de decidir o que fazer de nossas vidas. Não há quem já não tenha padecido ou vá padecer desse mal-estar.
Religião, filosofia e psicanálise têm suas divergências, mas concordam que a angústia entra na nossa vida ainda no nascimento. Soren Kierkegaard (1813-1855) e Michel Foucault (1926-1984) disseram ser a experiência da angústia o ingresso do homem à condição humana. Para Kierkegaard, ela é o preço da liberdade e, por conseguinte, parte integrante da vida em liberdade, no que concordou Jean-Paul Sartre (1905-1980). Para Sigmund Freud (1856-1939), "o ato de nascer é a primeira experiência da angústia, sendo assim a fonte e o protótipo da sensação de angústia". No cristianismo, ela nasce do pecado original, com a escolha pelo fruto proibido.
Ninguém pode, portanto, esperar-se o único abençoado livre da angústia. Cedo ou tarde ela chega, não sem uma razão. Em Kierkegaard, a angústia é o edifício da identidade humana. Nossa singularidade não se constrói sem algum sofrimento. Somos livres para escolher o que queremos e nesse percurso ninguém escapa à angústia porque ela implica numa perda (daquilo não escolhido) e muitas incertezas. Ambicionamos ser livres e a liberdade implica fazer escolhas, que por sua vez desencadeiam angústias. Em última análise, seria dizer que nossa experiência de angústia é que nos torna singulares, nos faz diferentes uns dos outros.
Se Adão tivesse permanecido na condição animal, não teria sentido angústia. A angústia o revelou humano, diz o filósofo e psicanalista Mario Fleig, professor de Filosofia da Unisinos e integrante da Escola de Estudos Psicanalíticos. O animal sente medo, mas não angústia. Kierkegaard não via esse sentimento como uma imperfeição humana. Dizia ele que tanto mais original o homem, mais profunda será sua angústia. Para Jacques Lacan (1901-1981), angústia é o afeto mais radical que temos, entendendo-se afeto como aquilo que nos afeta, nos atinge. Angústia, para ele, é o que se produz frente ao desejo do grande Outro, que na representação religiosa seria a divindade.
Em Sartre, a angústia surge no instante mesmo em que nos vemos condenados à liberdade, a tomar decisões próprias sem a garantia de certezas, responsáveis diretos pelo que fazemos, com toda carga de implicações que isso representa. Mas é desse risco necessário que criarmos a nós mesmos, nosso "ser". É dessa forma, com liberdade e angústia, que escolhemos o que somos, definimos a nós mesmos. Já para Martin Heidegger (1889-1976), a angústia tem origem diversa da liberdade. Ainda assim, como Kierkegaard e Sartre, ele refuta o determinismo lógico de Friedrich Hegel (1770-1831), para quem tudo está logicamente predeterminado para acontecer.
Em Heidegger, a angústia resulta da precariedade da existência, algo temporário que paira entre o nascimento e a morte. Porém, ela tem seu valor. Segundo Heidegger, dentre todos os sentimentos e modos de viver, a angústia é que pode nos reconduzir à nossa totalidade como ser e juntar os pedaços a que somos reduzidos pela imersão na monotonia e na indiferença da vida cotidiana. Ao apreender e elaborar a angústia, ao intuirmos o absurdo da existência, nos percebemos como um "ser para a morte", isto é, aceitamos a morte como "a possibilidade absolutamente própria, incondicional e insuperável do homem".
Nesse estágio, segundo Heidegger, ou fugimos para a vida cotidiana, ou superamos a angústia manifestando nosso poder de transcendência sobre o mundo e sobre nós mesmos. A angústia, diz o filósofo alemão, "liberta o homem das possibilidades nulas e torna-o livre para as autênticas". Ou seja, a angústia como compreensão existencial nos possibilita transformar a necessidade em virtude. Munch transformou sua angústia numa obra de arte que adquiriu o estatuto de ícone cultural. É uma prova de que podemos sair melhor do que entramos nesse processo de dor interna.
Na visão de Heidegger e Foucault, a angústia faz parte da nossa condição de estar no mundo. Portanto, a fenomenologia seria mais eficiente para dimensioná-la, uma vez que essa abordagem tem a ver com uma estrutura psicológica do ser, isto é, com uma condição para a existência humana e não como um mecanismo psicológico, como sustenta a psicanálise. Freud vê a angústia como sendo estrutural e a apresenta nas formas de uma neurose de angústia e de uma psicose de angústia.
Na psicanálise, esse mal-estar surge dos conflitos entre as três instâncias psíquicas responsáveis pelo nosso equilíbrio. Nossas vontades (Id) vivem em constante atrito com o instinto repressor (Superego), ao que Freud chama angústia. Cabe ao Ego (ou consciência), fazer a mediação entre a liberalidade do Id e o controle excessivo do Superego, analisando quais vontades podem ser postas em prática. Um exemplo? Você teria como por em prática todas suas vontades, inclusive as inconfessáveis? Pois a consciência busca esse equilíbrio do aparelho psíquico e, por extensão, o equilíbrio de nossas ações no meio social, a partir dos códigos éticos, morais, legais.
Para melhor lidar com a angústia devemos levar em conta que existem imprevistos na vida, observa a psicanalista Sandra Moreira Oliveira, da Letra Psicanálise, de Curitiba. Precisamos abrir espaço ao inesperado na nossa agenda para sabermos assimilá-lo. "Lidar com o inesperado, com situações angustiantes, nos permite lidar melhor com nosso cotidiano", diz Sandra. As incertezas, e a angústia delas decorrentes, crescem à medida que a idade avança. "A criança tem certeza que a mãe vai buscá-la na escola, mas nós não temos sequer a certeza de que estaremos vivos ao final do dia".



