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Roberto Carlos, em 2010, no show de 50 anos da RPC TV | Antonio Costa/ Gazeta do Povo
Roberto Carlos, em 2010, no show de 50 anos da RPC TV| Foto: Antonio Costa/ Gazeta do Povo

Já em 1968, quando ainda não se falava em bens imateriais, a canção de Roberto Carlos era tombada como patrimônio histórico pela turma da Tropicália. Mais especificamente pela música "Baby", de Caetano Veloso, gravada por Gal Costa: "Você precisa/ Tomar um sorvete/ Na lanchonete/ Andar com a gente/ Me ver de perto/ Ouvir aquela canção do Roberto."

ENQUETE: Qual canção de Roberto Carlos você acha que traduz melhor o talento do Rei?

Àquela altura, a partir de 1963, ele já tinha emplacado sucessos como "Splish, Splash", "Parei na Contramão", "Quero Que Vá Tudo pro Inferno", "Querem Acabar Comigo", "Eu Estou Apaixonado por Você", "Namoradinha de um Amigo Meu", "Como É Grande o Meu Amor por Você", "Se Você Pensa", "Eu Te Amo, Te Amo, Te Amo" e muitas outras canções que embalavam as jovens tardes de domingo e nas quais ele conjugava o verbo "amar" como poucos sabiam fazer.

O Rei nasceu cacique no Dia do Índio (também natalício de Getúlio Vargas), 19 de abril de 1941, na antiga Rua Índios Crenaques, em Cachoeiro do Itapemirim, Espírito Santo. Fazer música era tudo o que queria e, já aos 14 anos, em 1955, estreava na Rádio Cachoeiro.

Mudou-se para Niterói logo depois e foi tentar a sorte no programa de calouros da Rádio Nacional, A Hora do Pato.

Em 1957, conheceu uma turma braba da Tijuca, bairro da Zona Norte do Rio, que incluía Tim Maia e Erasmo Carlos. O lance da hora era o rock-and-roll, mas Roberto admirava João Gilberto e começou sua carreira como crooner na boate do Hotel Plaza, em Copacabana.

Convidado por Carlos Imperial para o programa Clube do Rock , da TV Tupi, era apresentado como "o Elvis brasileiro". Em 1959, gravou o primeiro compacto, "João e Maria/Fora do Tom"; em 1961, lançou o primeiro LP, Louco por Você, que nunca foi reeditado por opção do próprio RC.

O sucesso, mesmo, veio com o programa Jovem Guarda, estreado na TV Record de São Paulo numa tarde de domingo, 22 de agosto de 1965, para preencher o buraco deixado pela proibição da transmissão de jogos de futebol ao vivo. Os álbuns se sucederam e também os filmes, inspirados na fórmula dos Beatles: Roberto Carlos em Ritmo de Aventura (1968), Roberto Carlos e o Diamante Cor de Rosa (1970) e Roberto Carlos a 300 km por Hora (1971), todos dirigidos por outro Roberto, o Farias.

A receita do bom Rei continuava simples: canções de amor juvenis, com um leve tempero de rebeldia ao gosto dos inconformistas anos 60. Algo mudou, porém. A partir do AI-5, em dezembro de 1968, muitos jovens que protestavam contra a ditadura partiram para a clandestinidade, enfrentando a prisão e a tortura. Os artistas mais contestadores também tiveram problemas, não só com a censura.

Caetano e Gil partiram para o exílio em Londres; Chico Buarque se mandou para Roma. Chico teve de se esconder sob o pseudônimo de Julinho da Adelaide para publicar alguns de seus sambas mais ousados. Ou recorrer a parábolas e à linguagem cifrada para dar o seu recado, como em "Apesar de Você" e "Cálice".

Roberto saiu pela tangente. Entre os contestadores e os hippies, ficou com "os filhos da flor" e seu misticismo religioso. Além de adotar em seus modos e modas uma versão domesticada do look hippie, ele compôs em 1970 "Jesus Cristo", um verdadeiro hino de exaltação da via pacifista, em oposição à subversão armada. Um recente pesquisa do jornal O Estado de S. Paulo sobre as dez maiores canções de Roberto Carlos consagrou em primeiro lugar "Detalhes", com 25,2% da votação total. Esta canção de 1971 é uma espécie de resumo de todas as canções adolescentes da década anterior.

Roberto a esta altura já estava com 30 anos, mas a canção é admirável, uma fusão perfeita de letra e música, tornando universais detalhes como "o ronco barulhento do seu carro, a velha calça desbotada ou coisa assim", "os erros do meu português ruim" e coroada pelo resumo da ópera: "Detalhes tão pequenos de nós dois são coisas muito grandes para esquecer."

Talvez Roberto amenizasse assim as cicatrizes sociais dos Anos de Chumbo — na verdade, foram Anos de Sangue — esforçando-se para continuar surfando na onda romântica. Ironicamente, o homem que sabia tudo sobre amor, não foi feliz em suas escolhas. Do casamento com Cleonice (Nice) Rossi em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia (ela era desquitada), nasceram os filhos Roberto (Segundinho) e Luciana. A relação, prejudicada pela carreira intensa, durou dez anos. Roberto uniu-se a seguir com a atriz Myrian Rios (outros dez anos de solidão a dois) e, em 1996, casou com aquela que seria a mulher da sua vida, Maria Rita, mas ela morreu três anos depois de câncer.

Apesar das desditas, o discurso do Rei prosseguiu, romântico e envolvente, embrulhado na cor azul do céu, cor que se tornaria uma obrigatoriedade no mundo que o cerca: roupas, cortinas do palco, cenários, capas de álbuns, impressos de divulgações e uma série interminável de detalhes. A segunda canção de Roberto Carlos mais querida, na pesquisa do Estadão, foi, surpreendentemente, Como É Grande o Meu Amor por Você", do jurássico 1967. Já a terceira, "Emoções", se tornou, nos últimos anos, uma espécie de canção-manifesto, a Suma Ontológica de Roberto Carlos. Há tempos costuma ser a abertura e o fechamento dos seus shows, uma espécie de balanço de vida. "Sei tudo o que o amor é capaz de me dar. Eu sei, eu já sofri, mas não deixo de amar. Se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi."

Ao completar 70 anos, Roberto Carlos – como nos seus recentes cruzeiros musicais – segue seu curso e navega num mar de canções, pairando sereno acima do bem e do mal.

E la nave và...

O Rei e eu

Conheci Roberto Carlos numa situação tétrica. Estava no começo de um péssimo casamento. (Os 12 anos seguintes seriam piores.) Tinha passado três anos na BBC de Londres e agora era repórter da revista Manchete no Rio, um verdadeiro estranho no ninho. Uma de minhas primeiras missões foi levar Roberto Carlos para fazer uma foto diante do cinema que exibia Os Reis do Iê-iê-iê — título brasileiro do primeiro filme dos Beatles, A Hard Day’s Night (Em Portugal foi mais safo, pá: Os Quatro Cabeleiras do Após-Calypso).

Era dia de fechamento da edição, a foto tinha de ser para ontem. Na época, repórter era obrigado a usar paletó. Na redação, um caldeirão, todo mundo pendurava o paletó num armário. Peguei o meu, tropical inglês cinza Super Pitex, e parti com a fotógrafa para a Rádio Guanabara, no centro do Rio. O Rei, cercado de fãs, me deixou de molho.

Enquanto esperava, ansioso, senti um volume no bolso interno do paletó, uma carteira que não era minha. Logo, o paletó não era meu. Eu tinha pegado por engano o paletó do Ledo Ivo. O Ledo era um repórter-estrela da Manchete, só fazia textos especiais, como um perfil literário do Chico Buarque quando ele surgiu com "A Banda".

Se o Ledo soubesse que eu vestia seu paletó iria certamente me crucificar. Ou me acusar de batedor de carteira. Ele chegava antes do almoço, pendurava o paletó e subia para o restaurante. Depois, verificando que não havia nenhuma tarefa digna do seu talento, pegava o paletó e se mandava. Eu precisava, a todo custo, fazer a foto do Rei e voltar a tempo para a redação.

Suando frio no verão carioca, consegui convencer Roberto Carlos a fazer a tal foto, num carrão conversível apontando para as letras OS REIS DO IÊ-IÊ-IÊ na marquise do Bruni Flamengo, mais uma sala de cinema que virou templo evangélico. Voltei para a redação e reintegrei o paletó do Ledo Ivo ao devido lugar, com seus pertences incólumes. Ele nunca soube da história. Talvez agora, se chegar a ler estas mal-traçadas, fique sabendo, 46 anos depois.

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