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 | Ilustração: Osvalter Urbinati Filho
| Foto: Ilustração: Osvalter Urbinati Filho

No cinema

A mas recente investida dos céticos em relação a Shakespeare ter escrito Shakespeare ganhou as telonas no ano passado, mas deve sair apenas em DVD no Brasil: é Anônimo, com direção do alemão Roland Emmerich (de 2012 e Independence Day) e Vanessa Redgrave no papel da rainha Elizabeth I. Saiba mais sobre o filme:

Escândalo

O longa explora exclusivamente o "suspeito" Conde de Oxford – e, apesar da pergunta sensacionalista no cartaz do filme ("Shakespeare foi uma fraude?"), não discute a controvérsia nem dá direito de defesa ao Shakespeare de Stratford; quer apenas explorar o lado escandaloso da vida de Edward De Vere, supostamente filho bastardo da rainha e ainda amante da própria mãe. Não por acaso, Emmerich escolheu o livro Lost Kingdom ("Reino Perdido"), do ex-presidente da Sociedade Shakespeariana de Oxford, Charles Beauclerk, para guiar o filme.

Caricatura

Anônimo não apenas pressupõe a autoria de Oxford como também retrata Shakespeare e seus colegas dramaturgos de modo extremamente desfavorável e até desagradável: um bando de beberrões, com mais talento para a autopromoção do que para a escrita. Se o espectador conseguir abstrair a descarada e mesmo constrangedora caricatura, assistirá a um bem feito filme de época. Bom entretenimento.

Superficialidade

James Shapiro, porém, que assistiu ao longa duas vezes em pré-estreias (numa delas, convidado a debater o tema com o próprio diretor, o qual define como "uma pessoa encantadora"), acha que "o filme é bonito, mas superficial". E, felizmente para muitos, pouco convincente da hipótese de Oxford. "O que pensei ao assisti-lo é que as teorias da conspiração funcionam melhor quando compartilhadas aos sussurros. Quando se tenta colocar tudo às claras em um filme, soa meio ridículo", alfineta o autor de Quem Escreveu Shakespeare?

Em dezembro de 1929, enquanto analisava um médico americano chamado Smiley Blanton, Sigmund Freud perguntou a seu paciente se ele achava "que Shakespeare escreveu Shakespeare?". A questão surpreendeu Blanton que, sem acreditar no que ouvia, respondeu com outra pergunta: "Você se refere ao homem nascido em Stratford-upon-Avon – se escreveu as peças a ele atribuídas?". Quando Freud disse que "sim", Blanton, que idolatrava Freud, mas também tinha sentimentos por Shakespeare, tentou explicar, da melhor forma que pode, que estudara "a dramaturgia britânica por doze anos" até decidir se tornar médico, e que atuara "nos palcos por um ano ou mais, conhecendo de memória uma meia dúzia de peças de Shakespeare". Por sua experiência, Blanton não via razão "para duvidar de que o homem de Stratford tivesse escrito as peças". Não era a resposta que Freud queria ouvir. "Aqui está um livro que gostaria que você lesse", disse o analista a Blanton, "esse homem acredita que outra pessoa escreveu as peças".

Pobre Smiley Blanton. Quatro meses de análise – com nada menos do que Sigmund Freud – e era convidado a explorar as obsessões de seu terapeuta. No diário que mantinha sobre a terapia com Freud, o americano registrou ter ficado "muito chateado": "Pensei comigo que, se Freud acredita que Bacon ou Ben Jonson ou qualquer outra pessoa escreveu as peças de Shakespeare, não posso confiar em seu julgamento e não posso ir em frente com minha análise". Quando a sessão terminou, Blanton levou consigo o livro que Freud lhe entregara – "Shakespeare" Identified in Edward De Vere the Seventeenth Earl of Oxford ("Shakespeare" Identificado como Edward De Vere, o Décimo Sétimo Conde de Oxford)– e foi ao encontro de sua esposa, Margaret, em um café vienense que os dois costumavam frequentar depois de suas sessões. Mais tarde, Margaret relataria que o marido parecera "deprimido ao expor suas dúvidas sobre continuar a ver Freud".

Sem conseguir reunir ânimo para ler o livro, Blanton perguntou à esposa se ela o faria por ele. Margaret concordou e, após terminar a leitura, assegurou ao marido que era "obviamente uma obra que inspirava respeito". Margaret Blanton estava apreciando sua temporada em Viena, de onde escrevia regularmente para o New York Herald Tribune, e não tinha interesse em desistir de tudo e voltar para casa. Além disso, também estava em análise com uma jovem discípula e colaboradora próxima de Freud, Ruth Brunswick. Brunswick, uma oxfordiana, havia recentemente presenteado Freud com um exemplar de "Shakespeare" Identified com dedicatória. Não se sabe se esse foi o mesmo exemplar que Freud repassou a Blanton. Mas, se foi, temos diante de nós um cenário no qual Margaret Blanton tinha em mãos um exemplar com o qual sua analista presenteara Freud, que, por sua vez, o repassara a Blanton – há uma leve semelhança com o lenço que flana por tantas mãos em Otelo. Talvez Freud soubesse exatamente o que estava fazendo.

Smiley Blanton finalmente leu, ele mesmo, o livro e, embora "não estivesse convencido do argumento", ficou satisfeito em ver que não era "apenas mais um exercício baconiano de cifras e códigos secretos". Blanton havia progredido muito a partir de suas sessões e se sentiu aliviado por não considerar o terapeuta um maluco. Em poucos meses, o americano começou a ter sonhos nos quais identificava Freud com Shakespeare. A primeira conversa entre Freud e Blanton sobre a questão da autoria influenciou o americano a ponto de ele tê-la incluído em uma palestra que deu alguns anos mais tarde. "A partir daí", escreveu Margaret Blanton, "passamos a enviar novas obras sobre o assunto ao professor sempre que havia alguma novidade nos Estados Unidos. Freud sempre escrevia para agradecer pelos livros".

Os Blanton estiveram com Freud pela última vez em Londres, em 1938, pouco depois de o psicanalista ter desembarcado em terras inglesas, fugindo de Viena e da perseguição nazista. As sessões de Smiley terminaram antes do previsto por lá, porque Freud precisou passar por uma operação na mandíbula. Margaret falou brevemente com Freud na ocasião, e ele lhe pediu desculpas por fazer Smiley "atravessar o Atlântico e depois ter que interromper o tratamento". Freud perguntou a Margaret sobre os planos de ambos. Ela contou que, antes de retornarem a Nova York, "passariam alguns dias em Stratford-upon-Avon", para que seu marido pudesse "fuçar um pouco e acrescentar algumas informações à sua visão sobre Shakespeare". Freud respondeu à notícia com "uma frieza súbita e incomum": "Smiley realmente acredita que as peças foram escritas por aquele sujeito de Stratford?". A leitura de "Shakespeare" Identified não surtira o efeito desejado no americano. Embora fosse óbvio para Margaret que Freud "realmente conhecia e amava as peças enormemente", também era fato que ele não acreditava "naquele sujeito de Stratford". Margaret se sentiu tentada, de acordo com seu relato, a contar a Freud sobre a "prova de fogo" que seu marido enfrentara oito anos antes, quando o analista tentara pela primeira vez transformá-lo num oxfordiano, mas "de repente me dei conta de que, se o professor tinha algum senso de humor", ela jamais "o havia presenciado", e decidiu que era melhor não trazer o assunto à tona naquele momento: "Imagino que ele não acharia graça". E não disse mais nada.

Freud morreu em setembro de 1939, tendo promovido a causa oxfordiana até o fim.

Tradução de Liliana Negrello e Christian Schwartz.

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