• Carregando...

Vinte cinco anos depois de ser arrebatada, para o bem e para o mal, pelo poema épico "Idade da Terra", de Glauber Rocha, Veneza recebe outro drama nordestino que foge da linguagem comum do cinema. É Lírio Ferreira chegando ao tradicional festival, que começa esta quarta-feira e segue até o dia 10 de setembro, com seu "Árido movie". Único longa-metragem brasileiro no evento - "O jardineiro fiel", de Fernando Meirelles é uma produção britânica, vale sempre lembrar-, o filme vai mostrar a tão conhecida seca do sertão de uma maneira muito peculiar e com as características que já consagraram o diretor pernambucano em "Baile perfumado", de 1996.

Lírio acha engraçado levar o drama da seca para uma cidade onde sobra água. E vê com naturalidade a comparação com Glauber.

- Paradoxal levar um filme sobre falta d'água para uma cidade completamente inundada, é a cara do filme... - diz Lírio, referindo-se aos inúmeros canais navegados pelas tradicionais gôndolas venezianas, para em seguida justificar a comparação de "Árido movie" com "Idade da Terra". - Não acho que tenha ligação clara, mas Glauber está presente em qualquer pessoa que faça cinema inquieto, de dúvidas, que não entrega nada de bandeja.

A comparação entre o longa de Glauber e de Lírio partiu do próprio diretor da mostra internacional do 62º Festival de Veneza, Marcos Müller. Ele exaltou "Árido movie" em entrevista ao site da "BBC": "Fiquei surpreso com o resultado do trabalho do Ferreira. Gostei muito de 'Baile perfumado' e sou um apaixonado por histórias de cangaceiros", disse entusiasmado, justificando a escolha do longa para a mostra Horizontes, dedicada a novas tendências no cinema.

Lírio acredita ter sido escolhido por corresponder a essa "busca por novas apreensões" que caracteriza a mostra competitiva, onde participam filmes do artista plástico e marido de Björk, Mathew Barney, de Fernando Solanas e de Werner Herzog. "'Árido movie' dialoga com a música, as artes plásticas, a videoarte e as novas tecnologias", conta.

Está na música também a origem da comparação à "Idade da Terra". Assim como Glauber Rocha introduziu a sonoridade como elemento fundamental da narrativa, Lírio faz da trilha sonora seu outro personagem. Não é novidade no trabalho do diretor. Em "Baile perfumado" ele conseguiu contar a saga de Lampião e seus cangaceiros, sob os olhos de um cinegrafista turco, ao ritmo da moderna música pernambucana, orquestrada por Chico Science e sua Nação Zumbi.

Em "Árido movie", a trilha sonora original está a cargo de Otto, Berna Ceppas, Kassin e Pupilo (baterista do Nação Zumbi). E conta, ainda, com músicas dos anos 70 de Renato e seus Blue Caps, Zé Ramalho e Os Pholhas, além da participação "muito especial de Lafayette e seu teclado".

- A trilha dialoga muito com o filme. É tudo em clima de estrada, lisérgico, simbolista, uma mistura de mitologia grega e física quântica - explica o diretor, na sua habitual linguagem delirante, mas com certa razão, pelo menos dentro do que faz quando o assunto é cinema e música, algo que gosta de acompanhar em suas produções. - Desde a época do 'Baile' tenho essa mania. Sou fissurado com as músicas dos meus filmes. Gravo (as canções) antes de filmar e fico ouvindo enquanto rodo as cenas.

Lírio embarca esta terça-feira para Veneza ao lado do produtor e diretor de fotografia do filme, Murilo Salles, e dos protagonistas Giulia Gam e Guilherme Weber. Ele, um ator curitibano que despontou com a peça "A vida é cheia de som e fúria", de Felipe Hirsch, vive Jonas, um jornalista que apresenta a meteorologia na TV, em São Paulo. Ao receber a notícia da morte de seu pai (vivido por Paulo César Pereio) na cidade fictícia do Rocha, sertão de Pernambuco, ele volta ao lugar onde nasceu iniciando uma viagem interior.

- Chamei Guilherme porque é uma figura completamente estranha àquele lugar. Seu personagem nasceu em Pernambuco, é branco, olhos claros e 1m92cm. A cara de Pernambuco. O Otto mesmo daquele tamanho todo nasceu a 40 km de onde filmamos - conta Lírio, que rodou "Árido movie" nas cidades pernambucanas de Arco Verde, Mimoso e Vale do Catimbau, além de Recife e São Paulo.

Giulia Gam é a artista plástica e videomaker que está fazendo um documentário sobre água no sertão pernambucano. O elenco ainda tem Selton Mello, José Dumont na pele do índio dono de um posto de gasolina, Matheus Nachtergaele como o tio de Jonas, Renata Sorrah como a mãe do protagonista e ninguém menos que o dramaturgo e ator José Celso Martinez Corrêa.

- Ele faz um líder religioso. Pensei logo de cara nele. Queria me testar dirigindo o Zé. Foi um grande risco e um grande privilégio - conta Lírio, justificando a escolha de um dos mais controversos e talentosos diretores de teatro do Brasil, quase difícil de imaginar sendo dirigindo por outra pessoa atualmente. - Mas Zé é uma pessoa completamente disciplinada. A construção do profeta tem um pouco dele e de mim também.

Lírio gosta de destacar a atuação da modelo cearense Suyane Moreira. Ela faz sua estréia nas telas na pele de uma índia. O diretor conta que a determinação da aspirante à atriz foi fundamental para a escolha.

- Murilo (Salles) viu a foto dela na revista e disse 'Achamos nossa índia'. Chamamos para o teste e ela veio sozinha com seu dinheiro de São Paulo para cá. Fiz os testes, mas sempre de olho nela. Suyane é destemida, a cara da personagem.

"Árido movie", que custou R$ 1,6 milhão, deve estrear no Brasil em março de 2006. Antes disso, o público terá a oportunidade de conferir o aguardado longa no Festival do Rio, onde terá exibição "hors concours".

Muita expectativa para o primeiro longa depois de "Baile perfumado"?

- Nenhuma, estou relaxado, quero me livrar logo disso. Quero que as pessoas sentem e assistam, e não pensem que é 'Baile perfumado', é outro filme. Também quero que as pessoas saiam do cinema preocupadas. Não gosto da sensação de bem-estar, quero que fiquem incomodados e comecem a pensar sobre o que viram.

Veneza e toda sua aguaceira que aguardem "Árido movie".

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]