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O romance Os Noivos (I Promessi Sposi), do italiano Alessandro Manzoni, é uma das obras preferidas do papa Francisco. Nela se encontram dois tipos de religiosos: o primeiro, representado pelo padre Dom Abbondio, é o estereótipo do egoísta que deixa de cumprir o seu dever por covardia; o segundo, do qual fazem parte outros dois personagens, o Cardeal Frederico Borromeu e Frei Cristóvão, é composto por homens dispostos a morrer pela sua grei.

Entre as páginas lidas e relidas do livro por Francisco – segundo a descrição da jornalista italiana Stefania Falasca, em um interessante editorial do jornal católico Avvenire, em março deste ano –, está a conversão de um malvado fidalgo, autor de crimes grotescos, descrito por Manzoni como "Inominado". O nobre só consegue se arrepender e deixar a vida pregressa após ser acolhido pelo Cardeal e receber dele um abraço cordial e carinhoso. Nas palavras do papa Francisco a Stefania, a mudança se dá depois do encontro do pecador com a "misericórdia".

A metáfora literária ilustra bem o conteúdo do discurso proclamado pelo papa Francisco no último domingo, aos bispos responsáveis pelo Conselho Episcopal Latino Americano (Celam), no Rio de Janeiro. Em resumo, o papa reafirmou a necessidade urgente de sanar a pobreza espiritual, pior que a material, com uma maior aproximação da Igreja às pessoas, em diálogo com os desafios presentes no mundo atual. É uma alusão aos propósitos da última conferência realizada pelo grupo em 2007, em Aparecida, com a presença de Bento XVI. E isso só se dará, defende, no momento em que as autoridades eclesiásticas saírem ao encontro dos "pobres de espírito", como Frederico Borromeu fez com o Inominado no texto de Manzoni.

"Aqui estão em jogo atitudes", disse o papa, com a autoridade de quem é um jesuíta, acostumado a ir ao encontro das "periferias existenciais". "Não se pode esquecer que a Companhia de Jesus, da qual o papa faz parte, é uma das ordens mais sábias em termos de missão da Igreja, nascida na contrarreforma para combater os protestantes", lembra Roberto Romano, professor de Filosofia da Unicamp e autor do livro Igreja contra Estado.

Nessa dinâmica pastoral, além de vencer a pobreza espiritual, o papa convida também a valorizar os aspectos positivos de cada cultura. "Ao contrário do que faziam outras ordens religiosas, os jesuítas sempre procuraram entender quem eles queriam ajudar; não tentaram ‘europeizar’ essas pessoas, mas adaptavam a fé aos costumes desses povos, com um grande saber antropológico, e é essa flexibilidade que o papa quer inculcar nos bispos", explica.

Tentações

Nessa luta ativa contra a pobreza espiritual, pela qual o papa espera uma aceleração nas dioceses e paróquias, ele deixou claro para os bispos que não abre mão da doutrina de sempre da igreja católica. Para Francisco, a mensagem evangélica interpretada na Igreja, adaptada por cada fiel às suas circunstâncias pessoais, é a única capaz de dar soluções definitivas aos problemas humanos.

Essa postura fica clara quando Francisco fala das "tentações" a que os bispos estão submetidos em seu trabalho, como a de interpretar a fé de modo diferente, de acordo com as "ciências sociais", ou do "liberalismo de mercado" ou ainda segundo "categorizações marxistas". Ou a tentação de reduzir a igreja a uma ONG, preocupando-se só com o material em detrimento do espiritual, ou àquela do clericalismo, pela qual os leigos se escondem na sacristia sem assumir para si a responsabilidade de encontrar soluções para os desafios da sociedade.

"O papa fala de seguir o evangelho e não em buscar soluções fora dele, sem perder o seu conteúdo genuíno em uma tentativa descabida de atrair novos fiéis", analisa Fernando Altemeyer, professor de Ciências da Religião da PUCSP e autor de um volume de ensaios sobre a vida do papa. "O papa vê como é enganoso o cristianismo de marketing e propõe um cristianismo real, do qual todos podem se sentir identificados, do homem da rua, com esperança, mas também com sacrifício", continua.

Para servir

Nesse sentido, na parte mais exigente do discurso, o papa falou da necessidade de atacar a "psicologia de príncipes" para conseguir conquistar os corações e convencer com a doutrina. Para o papa, não basta falar, mas mostrar que se vive o evangelho à risca, com desprendimento e abnegação reais – assim as pessoas se sentirão atraídas a uma vida coerente, que dá respostas, e ficarão predispostas a mudar, como o "Inominado" do texto manzoniano. "O papa sabe que é preciso que as pessoas vejam na igreja uma posição decorosa, palavras acompanhadas com gestos vorazes; dessa forma, reconquistando a fé pública na Igreja, conseguirá persuadir a conversões e mudanças de vida", finaliza Romano.

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