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Jeanne Moreau prepara sua autobiografia “pouco convencional” | Fotos: AFP
Jeanne Moreau prepara sua autobiografia “pouco convencional”| Foto: Fotos: AFP
  • Agnès Varda: proximidade da morte e vontade de filmar

Rio de Janeiro - Jeanne Moreau foi o grande ícone feminino do cinema nos anos 50/60. Impôs sua arte e presença em filmes de Louis Malle (Ascensor para o cadafalso, Os Amantes), Roger Vadim (Ligações Perigosas), Antonioni (A Noite), Orson Welles (O Processo, A His­­tória Imortal), François Truffaut (Jules e Jim, A Noiva Estava de Preto). Poucas atrizes encarnaram de modo tão visceral a femme fatale como ela o fez em Eva, de Joseph Losey, um filme noir ambientado em Veneza em que encarna uma misteriosa andarilha com uma vitrola portátil que toca sempre a mesma canção de Billie Holiday.

Idolatrada no Brasil pelo público de cinemateca, Jean­­ne também escreveu, produziu e dirigiu filmes, foi cantora (apresentou-se com Frank Sinatra no Carnegie Hall), mas seu forte sempre foi a interpretação. (Orson Welles a chamou "a maior atriz do mundo.")

Já Agnès Varda preferiu ficar do outro lado das câmaras. Em 1965, quando Jeanne Moreau fazia sucesso ao lado de Brigitte Bardot em Viva Maria!, de Louis Malle, a cineasta franco-belga sacudia as platéias do mundo com um filme que passava do romântico ao trágico e tinha um desenlace chocante para muitos. Em Le Bonheur/As Duas Faces da Felicidade, um carpinteiro casado com uma costureira, com um casal de filhinhos, apaixona-se por uma funcionária dos correios. Em meio a passeios e pi­­queniques nas férias de verão, ele nutre a fantasia de que pode ficar com as duas. "Minha mulher é uma planta que cresce, você é um animal enjaulado", diz à amante. "Existe felicidade suficiente para todos nós." Mas sua mulher não vê as coisas do mesmo jeito e, quando o marido revela a situação, ela entra num lago e se afoga.

Passado o luto, o carpinteiro casa com a amante e a vida continua como se nada tivesse acontecido. Esse pragmatismo amoroso – beirando o cinismo – foi intensamente discutido em círculos psicanalíticos, congregações religiosas, grêmios universitários e programas de entrevistas na tevê. Bastou Le Bonheurpara fazer a fama de Agnès Varda, mas ela nunca foi cineasta de um filme só e dirigiu duas dezenas de longas numa carreira de mais de meio século.

Ambas com 81 anos, Jeanne e Agnès foram as primeiras convidadas internacionais a chegar ao Festival de Cinema do Rio. Jeanne participou de debates, Agnès lançou As Praias de Agnès, uma autobiografia documental. Debatendo seus 60 anos de carreira no Cine Odeon – onde foi assediada por atrizes da nova geração, muitas delas estrelas de telenovelas – Jeanne teve a companhia de Cacá Diegues, que a dirigiu em Joana, a Francesa, filmado em 1973 no Brasil. Diegues a definiu como uma "atriz que fundou sua arte no mistério e complexidade da natureza humana. Se o cinema tivesse um rosto só, poderia ser o dela."

Outro fã de carteirinha da Moreau, o cantor Milton Nas­­ci­mento compôs "Paz do amor Que Vem", "Crença" e "Gira, Gi­­rou" depois de ver Jules e Jim. Ad­­mitindo que a atriz "foi de uma importância fundamental para que eu começasse a compor", Milton escreveu no jornal carioca O Globo: "Jeanne é uma atriz que realmente vive todos os seus personagens de tal maneira que, na maioria das vezes, você acha que o personagem é ela. A vida no filme é dela".

Na metralhadora giratória das coletivas, Jeanne teorizou de modo prático sobre as tendências do cinema: "Há filmes hoje que expõem uma realidade em crise, mas nem por isso trazem uma reflexão política. Os filmes de maior sucesso nos EUA depois da quebra da Bolsa, em 1929, e nos anos 1930, foram comédias. Em tempos de crise, as pessoas se agarram ao riso."

Em entrevistas mais intimistas, a atriz se esparramou sobre sua atração pelo país que visita: "Todos esses diferentes povos invadiram o Brasil e aqui ainda falam a mesma língua. E a religião? O candomblé pegou todos os santos católicos. Sou filha de Iansã. Minhas cores são azul e branco."

Um pouco da vida pessoal de Jeanne Moreau – a ponta do iceberg –transpareceu na projeção do documentário Jeanne Moreau: um Retrato Íntimo, codirigido e produzido pela amiga Josée Dayan: "Há coisas de minha vida particular que prefiro não comentar. Talvez o interesse das pessoas tenha a ver com o fato de que minha vida e minha carreira estão entrelaçadas."

Jeanne teve três maridos, um deles o cineasta William Friedkin (de O Exorcista); viveu com diretor Tony Richardson (que deixou Vanessa Redgrave por Jeanne); e envolveu-se amorosamente com Louis Malle e François Truffaut. Mas a última palavra da sua história caberá a ela mesma, no seu livro de memórias, que não será "algo tradicional, do início ao fim, porque reajo ao que acontece no mundo à minha volta, que está sempre mudando."

Perdas de Agnès

Também no calor das entrevistas coletivas, Agnès Varda tentou definir seu trabalho em função do último filme As Praias de Agnès: "É como uma praia no caminho. Eu não compreendo toda a realidade. Então preciso cavá-la para achar a imaginação, a reflexão, o sonho. Só aí a realidade se transforma em algo compreensível."

Num momento mais descontraído, a cineasta caminhou por uma praia real, a de Copacabana, com o repórter do Jornal do Brasil. Apesar da idade, demonstrou grande vigor, filmando tudo à sua volta com sua minicâmara. Lamentou as perdas, como a morte do marido cineasta Jacques Demy (Os Guarda-Chuvas do Amor).

"Há dois problemas em envelhecer. O primeiro são as pessoas que morrem antes de você. Estão com a gente, mas estão mortas. O outro é que avançamos sobre a morte, pois a distância entre mim e minha morte diminui a cada dia. Mas eu gosto de estar velha, porque a vida tem uma energia que eu acho que passa pelo filme e pela minha própria energia."

Em conversa com o grupo Nós do Morro, na favela do Vidigal, perguntada qual o melhor filme que fez, Jeanne Moreau exclamou: "O próximo!"

O otimismo de Jeanne e a garra de Agnès são provas de que o cinema – antigamente chamado "a sétima arte" e hoje uma poderosa indústria – vai continuar mexendo, cada vez mais, com os corações e mentes do mun­­­­do inteiro.

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