• Carregando...
Gênesis, por Robert Crumb: texto literal e humor contido marcam versão ilustrada da sagrada escritura |
Gênesis, por Robert Crumb: texto literal e humor contido marcam versão ilustrada da sagrada escritura| Foto:

Spiegelman faz viagem íntima em Breakdowns

Art Spiegelman experimentou pelo menos dois momentos fantásticos na carreira de cartunista. Quando venceu o Prêmio Pulitzer pelo livro Maus (Companhia das Letras), em 1992, e quando teve de pensar a capa da New Yorker na edição de 24 de setembro de 2001, duas semanas depois dos ataques terroristas que destruíram o World Trade Center. Ele era diretor de arte da revista e criou uma imagem genial: as torres foram impressas em tinta preta sobre um papel preto. À primeira vista, parece que a capa é apenas preta, mas um segundo olhar revela as silhuetas das torres que já não existiam mais.

Veja a matéria completa

  • Página de
  • Experimentações com traços e a defesa dos quadrinhos como arte marcam a carreira do autor

Um Deus barbudo que lembra Mr. Natural, uma Eva de traseiro mais do que avantajado e algumas cenas de nudez e sexo. Esses, muito possivelmente, sejam os elementos mais "chocantes" de Gênesis, versão ilustrada para o primeiro livro da Bíblia, concebida pelo mais importante artista das histórias em quadrinhos da atualidade, o norte-americano Robert Crumb.

Aos 66 anos, o desenhista, que vive há 18 no sul da França, resiste à tentação de apelar para a sordidez, a ironia e o humor escrachado – características marcantes de seus principais trabalhos, entre eles o já citado Mr. Natural e o felino Fritz the Cat – e se coloca no papel de mero ilustrador dos 50 primeiros capítulos da Bíblia, reproduzindo cada palavra do texto original, tirado de várias fontes, incluindo a Bíblia do Rei James e a recente tradução de Robert Alter (The Five Books of Moses, 2004).

"Se minha interpretação visual e literal do livro bíblico "Gênesis" ofender ou ultrajar alguns leitores, o que parece inevitável dada a reverência de tantas pessoas por ele, tudo que posso dizer em minha defesa é que abordei isto como um trabalho de pura ilustração, sem intenção de ridicularizar ou fazer piadas visuais", justifica Crumb, no texto de introdução do livro.

Publicada simultaneamente nos Estados Unidos e no Reino Unido no dia 19 de outubro, a obra chegou às livrarias estrangeiras com capa colorida e estampada com a observação "supervisão de adultos recomendada para menores". Mes­­mo assim, sua primeira edição se es­­gotou das prateleiras em menos de um mês. A edição bra­­sileira, lançada recentemente pela editora Conrad, não contém a recomendação quanto à classificação indicativa, mas, "por temor à reação dos religiosos fundamentalistas do Brasil" (palavras da agente literária de Crumb, Lora Fountain, em entrevista ao jornal gaúcho Zero Hora) recebeu uma capa mais só­­bria, em preto-e-branco, ilustrada apenas com o desenho de Crumb que representa a criação do universo.

Pesquisa

Crumb, que inicialmente tinha o projeto de ilustrar apenas o paraíso, não esconde que resolveu desenhar Gênesis inteiro graças a um bom acordo financeiro conseguido por sua agente literária. Movido por um interesse antigo que mantinha pelas culturas antigas da Suméria, Acádia, Babilônia e As­­síria (além da grana farta, é claro!), o cartunista mergulhou a fundo em pesquisas sobre o contexto do surgimento do livro "Gênesis", mesmo sendo um cético declarado. "Eu, ironicamente, não acredito que a Bíblia é a palavra de Deus’. Acredito que é a palavra dos ho­­mens. É, no entanto, um texto po­­deroso, com camadas de significados que mergulham fundo em nossa consciência coletiva, ou consciência histórica, se preferir", revela, na introdução.

Sem tentativas de "modernizar" ou tornar "mais dinâmicas" as ve­­lhas escrituras, como fazem nove entre cada dez versões em quadrinhos da Bíblia, Crumb atinge com Gênesis um patamar de seriedade nunca visto antes em sua obra. "Em alguns raros trechos me aventurei em pequenas interpretações próprias, quando considerei que as palavras poderiam ser ditas de maneira mais clara. Mas me abstive de ser indulgente nessa ‘criatividade’ e, por vezes, mantive sua intrincada vagueza em vez de balburdiar em texto tão venerável", conta.

Entre as poucas "interpretações" presentes na obra, está o desenho da serpente que oferece a Eva o "fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal". Con­­trariando todas as descrições feitas até hoje, Crumb toma a liberdade de desenhar a criatura com braços e pernas, partindo do princípio de que ela só passa a "rastejar sobre o ventre" e a "comer o pó por todo o sempre", após ser amaldiçoada por Deus.

Também fica clara uma tentativa do cartunista de ressaltar a figura feminina em meio a uma narrativa historicamente repleta de privilégios masculinos e autoridade paternal. No capítulo 12, por exem­­plo, quando Abrão oferece sua esposa Sara ao faraó do Egito em troca de escravos e camelos, Crumb revela no rosto da mulher um expressão inicialmente perplexa, que em seguida dá lugar a uma discreta lágrima. Até então, a reação de Sara diante da indecorosa troca feita pelo marido não havia sido descrita em uma linha sequer da sagrada escritura. "Existe muita confusão envolvendo as mulheres e a geração de herdeiros para levar adiante a linhagem familiar e a im­­portante missão designada por Deus", analisa o autor, na es­­clarecedora seção de comentários e observações a respeito dos ca­­­­pítulos.

Outra cena de Gênesis retratada por Crumb que vem gerando bastante polêmica entre os religiosos é o episódio incestuoso que envolve a família de Ló, sobrinho de Abraão. Após a destruição de So­­doma e Gomorra, a esposa de Ló é transformada em sal e suas duas filhas ficam preocupadas com o fato de não haver nenhum homem por perto para se juntar a elas e dar continuidade à sua linhagem familiar. A mais velha cria então um esquema, sugerindo que ambas durmam com o pai, embebedando-o para isso. O plano funciona e as duas irmãs engravidam do próprio genitor. Todo o episódio é devidamente ilustrado por Crumb, incluindo as cenas de sexo entre as garotas e o pai que, de tão bêbado, não as reconhece. Mas, o que choca não é arte – bastante contida para os parâmetros "crumbianos", por sinal – e sim, o próprio comportamento das irmãs que só passou a ser tido como proibido mais adiante na história, sob as leis de Moisés.

Anunciado por Jonathan Cape, editor de Crumb, como uma "sátira escandalosa" que "apresenta uma complexa e até subversiva narrativa", Gênesis é, na verdade, uma obra-prima extraordinariamente séria, ilustrada de maneira honesta, detalhada e original, pa­­lavra por palavra.

* * * * *

Serviço

Gênesis, de Robert Crumb. Conrad Editora. 224 págs., R$ 49,90.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]