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O Grande Salto Adiante na China de Mao Tsé-Tung matou milhões pela fome: autor transformou em ficção a miséria real testemunhada por ele e sua família naquele período | Reprodução
O Grande Salto Adiante na China de Mao Tsé-Tung matou milhões pela fome: autor transformou em ficção a miséria real testemunhada por ele e sua família naquele período| Foto: Reprodução

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Crônica de um Vendedor de Sangue, de Yu Hua. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Companhia das Letras, 272 págs., R$ 41.

Entre as décadas de 1950 e 1960, a China viveu o que foi chamado de O Grande Salto Adiante, uma tentativa do líder Mao Tsé-Tung em forçar a aceleração do processo comunista que vinha se estabelecendo no país. As áreas rurais foram povoadas à força e as cidades encheram-se de indústrias. Como resultado, a população empobrecia por mais que trabalhasse, e o processo todo resultou em mais de 20 milhões de vítimas da fome. Durante essa época, o escritor Yu Hua, filho de médicos, acompanhava a rotina de seus pais e a fila de camponeses que se formava no hospital para vender sangue e ganhar o equivalente a meses de trabalho por 400 mililitros do líquido vital. Ciente das agruras do período, Hua transformou suas experiências em ficção no livro Crônica de um Vendedor de Sangue, a terceira obra de sua autoria que chega ao Brasil.

O livro conta a saga de um desses vendedores de sangue, Xu Sanguan, que aprende com amigos do campo os truques para vender "o produto" corretamente: beber água para diluí-lo, subornar o Chefe do Sangue Li – como é chamado o responsável por decidir quem pode e quem não pode participar do comércio – e recompensar o corpo com um banquete de fígado de porco e vinho de arroz amarelo, para aumentar as hemácias e o plasma, respectivamente, na sabedoria popular. Por mais tentadora que seja a empreitada, porém, ela logo mostra seu preço, e arriscar a vida vendendo mais sangue do que é permitido logo se torna a sina do protagonista.

Reduzir o romance de Yu Hua a esse aspecto, porém, é desconsiderar boa parte do drama familiar do protagonista, compartilhado por todo o país durante os anos da Revolução Cultural (1966-1976). Obstinado a casar-se com a bela Xu Yulan, Sanguan tem sua honra manchada quase uma década após o casamento, quando descobre que seu primogênito Yile ("primeira alegria", em chinês) é filho de He Xiaoyong, o antigo noivo da esposa. Como se não bastasse, ela não perde uma oportunidade de armar qualquer barraco doméstico e deixar seus vizinhos a par de todos os segredos da família, e os problemas em que seus filhos se metem obrigam-no a se endividar cada vez mais, recorrendo sempre ao fim à velha e perigosa prática de vender sangue.

Com uma linguagem quase viciada, com parágrafos que se abrem da mesma maneira e palavras repetidas a cada nova frase, Yu Hua é um daqueles escritores que conseguem criar uma voz inconfundível e prender o leitor, sem com isso limitar sua imaginação. Por exemplo, ao mesmo tempo em que nunca descreve como é o processo de vender sangue, não deixa de explicitar a escassez de alimentos e a situação de extrema pobreza em que vive a família de Xu Sanguan durante a década de 1960.

Mesmo com uma linguagem crua e pouco adjetivada, os personagens de Crônica de um Vendedor de Sangue ganham densidade e complexidade ao longo do romance de formação. Tão complexo quanto o estilo de seu autor, Crônica de um Vendedor de Sangue é um excelente exemplo de como a literatura contemporânea pode ganhar ares de um novo clássico. GGGG1/2

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