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Amanda Rossi foi encontrada morta dentro do campus da Unopar | Roberto Custódio/JL
Amanda Rossi foi encontrada morta dentro do campus da Unopar| Foto: Roberto Custódio/JL

O romance A Cada um o Seu, do autor siciliano Leonardo Sciascia, morto em 1989, pode parecer à primeira vista apenas um irônico relato policial sobre o assassinato de dois moradores de um pequeno vilarejo na Sicília. Mas, à medida que a leitura avança, percebe-se que a estrutura clássica de um giallo (como os italianos denominam o gênero), com fórmula matemática que culmina inevitavelmente na solução do mistério, é propositadamente subvertida.

Do mestre do suspense, Edgar Allan Poe, Sciascia empresta o epíteto: "Mas não pensem que eu esteja para revelar um mistério ou escrever um romance." A frase, da obra Os Assassinatos da Rua Morgue, dá a pista de como (e para onde) o autor italiano, traduzido em todo o mundo, pretende conduzir a trama.

Pouco antes de ser assassinado, o farmacêutico Manno recebe uma carta anônima que anuncia: "Você vai morrer pelo que fez". O crime impressiona os moradores do vilarejo e confunde a polícia. Intrigado, o professor Laurana, um intelectual solteirão que aos 40 anos ainda vive com a mãe, decide, "por vaidade", seguir uma pista inicial. O leitor acompanha o protagonista (pelo menos é o que ele parece ser, de início), atrás das pegadas do criminoso, até que repentinamente ambos acabam envolvidos em uma "fatalidade".

O gênero policial, portanto, serviu apenas de inspiração para que Sciascia, que também atuou na política italiana, desenvolvesse suas idéias neste livro, publicado em 1966. Em um trecho do livro, ele escreve, contrapondo a realidade ao romance policial: "(...) as coisas se apresentam de forma diferente, e os coeficientes de impunidade e de erro são altos não porque (ou não apenas ou nem sempre) é baixo o intelecto dos inquisidores, mas sim porque os elementos que um crime oferece são em geral absolutamente insuficientes. Um delito, digamos, cometido ou organizado por gente que têm a máxima boa vontade em contribuir para manter o alto coeficiente de impunidade".

Sciascia obviamente não se refere a ladrões de galinha, mas ao requinte da máfia siciliana. Desde seu primeiro romance, Fábulas da Ditadura, de 1950, uma sátira ao fascismo, ele denuncia a corrupção política e o poder arbitrário, seja de políticos, de famílias ricas ou do clero.

Nem a população siciliana escapa de seu olhar rigoroso. Como outros autores do sul da Itália que o precederam (antes mesmo de produzir mafiosos, a Sicília já abrigava grandes escritores), Sciascia revela o modo muito peculiar (e, por vezes, um tanto primitivo) de ser e de pensar de seus conterrâneos, com uma acuidade que só é possível a quem é parte daquela cultura.

Em sua investigação, Laurana se depara com alguns personagens típicos "de sua raça", a quem Sciascia dá voz sem condescendência e, no entanto, permitindo-lhes expor com independência seus pontos-de-vista. Exemplos são duas figuras do clero, na aparência, muito diversas: o "repugnante" pároco de Santana, e o arcebispo Rosello.

O primeiro, ganancioso conhecedor de arte sacra e contador de piadas sexuais envolvendo padres, revela ao professor, intrigado por suas idéias liberais: "O fato é que me sinto à vontade com este hábito; e, entre a comodidade e o despeito, alcancei um equilíbrio, uma perfeição, uma plenitude vital...". O outro esconde negócios escusos sob o manto de uma figura angelical, evangelizadora.

Além da crítica à Igreja, o leitor se diverte com a maneira como Sciascia deixa entrever, sem esconder sua acidez, as observações preconceituosas dos homens durante o carteado diário; o moralismo hipócrita das mulheres; ou o machismo que leva o professor Laurana a refletir: "(...) em qualquer lugar do mundo, onde a barra de uma saia subisse alguns centímetros acima do joelho, num raio de trinta metros, certamente haveria um siciliano, pelo menos um, para apreciar o fenômeno".

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Serviço: A Cada um o Seu, de Leonardo Sciascia. Tradução de Nilson Moulin (Alfaguara, 136 págs., R$26,90).

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