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De relance, cada linha escrita por Paul Auster desde o lançamento do romance Trilogia de Nova York em 1987, nos EUA, se desenrola sobre os mesmos temas: (perda da) identidade, solidão, a (falta de) lógica do destino, o poder do acaso e das coincidências. Detratores reclamam que a ficção do norte-americano nascido em Newark, Nova Jersey – cidade de Frank Sinatra –, é condescendente com seus leitores e seus jogos intelectuais são difíceis apenas o suficiente para afagar o intelecto alheio.

Para saber se as críticas conferem, faça um teste, experimente ler a Trilogia, considerado o título mais importante – e certamente o mais estudado – de toda a sua obra. Se o lance de criar histórias dentro de histórias, pipocar a ficção com referências à realidade deste mundo – como um personagem chamado Paul Auster – e se dedicar a passagens engenhosas não agradar, é melhor nem chegar perto de Desvarios no Brooklyn (Tradução de Beth Vieira. Companhia das Letras, 326 págs., R$ 45), novo romance de Auster, lançado no Brasil seis meses antes de sair no mercado americano.

Esses "seis meses antes" se devem ao calendário americano de lançamentos literários. Considerado literatura "séria", Auster não é publicado na temporada de verão (e de férias), dominada por Sidneys (Sheldon), Barbaras (Delinsky) e Danielles (Steel). Assim como ocorre com os filmes, livros "sérios" são lançados no outono e no inverno, quando as pessoas saem menos de casa, ficam mais introspectivas e, por suposto, lêem mais.

Antes de Desvarios, Auster trabalhou em um projeto chamado de National Story Project (Projeto de Ficção Nacional), criado para a NPR, a rádio pública americana. Convidado a participar de um programa para narrar histórias, o escritor teve a idéia de ler textos de outras pessoas e não apenas os seus. Montou o NSP, selecionou inúmeros relatos enviados de todas as partes dos EUA e, além de lê-los no ar, organizou o livro Achei Que Meu Pai Fosse Deus, lançado no Brasil também pela Companhia das Letras.

Ecos desse livro, em que pessoas relatam acontecimentos íntimos e por vezes banais – como lembranças de infância ou de uma galinha perdida na rua –, aparecem em Desvarios, na figura de Nathan Glass.

Senhor de quase 60 anos, Glass se recupera de um câncer no pulmão, que forçou sua aposentadoria precoce no ramo de seguros. Resignado a suas limitações físicas, ele procura um lugar para morrer. Como o livro é de Auster, o lugar não poderia ser outro senão o bairro do Brooklyn, em Nova Iorque, cenário de quase todos os seus textos e sua vizinhança há mais de duas décadas.

Recém-divorciado, ignorado pela filha e beirando a amargura, Glass reencontra seu sobrinho, outro frustrado que deu as costas à carreira acadêmica para ser taxista, e se envolve em uma série de confusões, boa parte delas bem-humoradas – como servir de pai a uma menina de 9 anos. Humor é algo raro na prosa soturna de Auster – embora pessoas que o conheçam afirmem que é, de fato, um sujeito divertido.

Enquanto espera o fim, Glass decide escrever um livro, contando episódios pitorescos que viveu ou dos quais ouviu falar. Essa é, de certa forma, a proposta de Achei Que Meu Pai Fosse Deus.

Em entrevista ao diário londrino The Guardian, à época do lançamento de O Livro das Ilusões (2002), Auster, aos 55 anos, dizia estar impressionado com a decadência rápida de seu corpo – depois dos 50, experimentou problemas de saúde que não sabia que tinha. Fumante e defensor da liberdade de poder levar o vício, ao contrário da maioria arrependida, é fácil prever que um desses problemas esteja ligado ao cigarro. Ele chegou a ser entrevistado pelo programa 60 Minutes, criticado por fazer apologia ao tabaco nos filmes Cortina de Fumaça e Sem Fôlego – ambos de sua autoria. Dono de uma fala enrouquecida, pontuada por tosses pigarrentas, Auster usa Desvarios para refletir sobre a finitude da vida – e sobre os aspectos que dão continuidade a ela. Faz sentido dedicar o livro à filha, Sophie.

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