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Bakun: arte como uma orgulhosa autoflagelação | Reprodução
Bakun: arte como uma orgulhosa autoflagelação| Foto: Reprodução

A pintura de Miguel Bakun aparece no mesmo período que vê nascer a revista Joaquim, na segunda metade da década de 1940. Naquele tempo, os jovens artistas e escritores do Paraná buscavam superar o atraso da produção artística da província, atualizando as suas poéticas em conexão com o que acontecia no resto do Brasil e no mundo. Essa busca de atualidade incluía uma crítica violenta de tudo o que representava a tradição, encarnada na pintura ainda acadêmica de Alfredo Andersen e na poesia simbolista de Emiliano Perneta. Por outro lado, o fim da Segunda Guerra Mundial era uma lembrança muito próxima e assustadora, que impelia os artistas a reconsiderar, globalmente, o seu papel na sociedade. Importava ser não apenas atual, mas também universal, respondendo ao novo momento histórico; criticando Emiliano, Dalton Trevisan afirmava que "para nós, neste instante, são as fronteiras do mundo, e não as da Rua XV, que procuramos atingir".

A pintura de Bakun não era estranha a este contexto histórico. Certamente próximo do círculo de Guido Viaro, o jovem Bakun trabalhou num ateliê coletivo de pintura, na Praça Tiradentes, com Esmeraldo Blasi Jr., ilustrador bastante frequente da Joaquim. Era na revista que Viaro divulgava seus ideais artísticos, segundo os quais o artista é condenado a ser intérprete de si mesmo, movido pelo egoísmo e pela vaidade. Mas era precisamente através deste mergulho no interior de si mesmo que o artista poderia alcançar a comunicação artística, condição para a universalidade da obra. O dilema individualidade versus universalidade é uma constante nas reflexões de Viaro, para quem a "descida em profundidade dentro de si mesmo" era a "única forma profunda de honestidade."

Ao escrever sobre Bakun na Joaquim, Viaro o considera como um personagem de Dostoiévski, para quem a arte era uma orgulhosa autoflagelação. "É uma pintura que é mais ele mesmo do que a natureza", diz Viaro, "é uma pintura subjetiva, sem sol nem ar – como a própria alma dele". A pintura sufocante e perturbadora de Bakun, com seus defeitos e qualidades, era um exemplo do "mergulho em profundidade": uma arte produzida unicamente com os meios do artista e da sua personalidade.

Como se sabe, Bakun jamais teve aulas de pintura ou desenho, e suas telas apresentam, muitas vezes, perspectivas estranhas ou incoerentes, como também figuras – pessoas ou animais – realizadas de forma canhestra ou errada, se avaliadas pelos padrões da figuração realista. "A cor?" – continuava Viaro – "Não existe, não existe manhã nem tarde nem meio-dia". Nos quadros de Bakun não se encontra uma única pincelada realizada com uma cor homogênea. As misturas são realizadas diretamente sobre o quadro, e em cada golpe de pincel percebe-se a presença de duas ou três cores. Seus quadros revelam a luta do artista para constituir um mundo feito apenas a partir da sua atormentada interioridade, que se exterioriza na manipulação grosseira e pesada da tinta.

É precisamente pelo seu compromisso quase religioso com uma técnica absolutamente subjetiva que a pintura de Bakun impressiona. Sua pintura representa o mundo como um turbilhão de pinceladas sujas, construindo cada coisa representada com um procedimento diferente. Bakun inventa ao mesmo tempo em que faz. Aqui uma pincelada grossa, numa curta linha horizontal, revela a copa de uma araucária em azul; ali, a tinta diluída representa a superfície de um lago, cheio de reflexos incoerentes com a paisagem. Toscos traços em branco e cinza são gaivotas, e troncos de árvores são realizados com contraposições de golpes em azul e amarelo – um amarelo ácido, doentio. Mas a sua pintura, mesmo assim, faz sentido: ela revela um mundo cheio de angústia, mas que também traz consigo a dimensão do divino.

Por tudo isso, a pintura de Bakun é a maior realização plástica da geração da Joaquim. Nele, a absoluta individualidade converte-se numa obra de impressionante universalidade: na sua estranheza e opressão, a sensação visual revela, também, uma profunda concepção religiosa da natureza. Seus fundos de quintal e suas paisagens provincianas, quase íntimas, trazem a natureza ao lugar a que ela pertence, ao único lugar em que ela pode existir: a subjetividade. A premissa filosófica que Bakun entendeu é a de que a natureza só existe para nós – na nossa percepção. Na sua profunda subjetividade, ele alcançou a universalidade; nas suas paisagens e marinhas, tão reconhecíveis – estranhamente reconhecíveis–, nos vemos universais, unidos na angústia do mundo. A pintura de Bakun materializa, assim, a sensação física do mal-estar do homem diante do absurdo da existência, evidenciado após a Segunda Guerra Mundial; e ainda que Deus habite a natureza, não há mais redenção. Sem querer, antecipou as experiências abstratas na arte paranaense, e sem o saber, foi o mais intenso intérprete da nossa paisagem, da nossa natureza.

A crítica de arte atual tem pudores em pronunciar juízos definitivos – o que, até certo ponto, é justificável –, mas perde-se licenciosamente em malabarismos verbais e complicações filosóficas. Por isso é preciso dizê-lo, assim, simplesmente: Miguel Bakun é o maior pintor do Paraná.

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Serviço

Miguel Bakun – a Natureza do Destino. Casa Andrade Muricy (Al. Dr. Muricy, 915), (41) 3321-4798. De segunda a sexta, das 10 às 19 horas; sábado e domingo, das 10 às 16 horas. Até 9 de agosto.

Fabricio Vaz Nunes é crítico e historiador da arte e professor da Escola de Música e Belas-Artes do Paraná (Embap).

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