
Rio de Janeiro - Em termos de letras, nosso foco era o "Letras&Artes", suplemento cultural do jornal Diário do Paraná. Mas em termos de "artes" da arte de falar mal à arte de zoar (a palavra não existia, mas a prática estava em alta) , nosso domínio era a Boca Maldita.
Em meados dos anos 1950, a rapaziada começou a se reunir ali, na esquina do Café Ouro Verde, mais exatamente a esquina da Rua Desembargador Ermelino de Leão com a Avenida João Pessoa (hoje Luís Xavier), que se gabava de ser "a menor avenida do mundo". Foi um dos nossos quem batizou a Boca Maldita, Adherbal Fortes de Sá Júnior, com sua verve afiada ("aqui, quem morder a língua morre envenenado.").
Segundo Sylvio Back, que editava o "L&A", éramos "um misto de jornalistas experimentados e uma dezena de românticos novatos, todos indisfarçáveis candidatos a escritor, poeta, crítico de literatura, cinema e teatro, advogado, político, músico, sindicalista e cineasta." A turma incluía mestres na arte de falar mal (e colocar seu veneno em textos), como Luiz Geraldo Mazza e Valmor Marcelino.
Back perseguiu seu sonho e tornou-se cineasta premiado e maldito; Adherbal publicou o melhor livro de reminiscências da época, Vestido Branco/Uma Aventura Musical (2006), autêntica arqueologia da Curitiba noturna dos anos 50/60. Outros que se destacavam: o advogado René Ariel Dotti, elegante cronista; o contista e poeta Hélio de Freitas Puglielli, o crítico e contista Oscar Milton Volpini; e algumas coleguinhas, como Celina Luz, Helena Vergueiro e Regina de Andrade.
A maioria de nós pertencia à tribo dos jornalistas. Até certa hora da noite, fechávamos as edições da Gazeta do Povo, do Diário do Paraná, de O Dia (todos na Praça Carlos Gomes), do Estado do Paraná (na Barão do Rio Branco), e, a partir dos anos 60, da Última Hora, na Voluntários da Pátria. Depois, convergíamos para a avenida com suas confeitarias de nomes indianistas, a Guairacá num extremo, a Iguaçu no outro.
Da Iguaçu na sobreloja mais alta do mundo, outro superlativo para nossas cores podíamos ver as árvores da Praça Osório (pelo menos até a quarta ou quinta dose). Os 200 e poucos metros da avenida concentravam também a Cinelândia curitibana: Ópera e Odeon, na face norte; Avenida e Palácio, na face sul. No Ópera, eu me alienava com os musicais da Metro, até a matinê fatídica em que vi Ladrões de Bicicletas e saí atordoado para o sol da avenida: nunca imaginei que o cinema e a vida pudessem ser assim. No Palácio, vimos nossos primeiros filmes "adultos", geralmente italianos, com as deusas Sophia, Silvana e Gina ("Viva Gina!" era o nosso lema.)
Desculpem se não falo muito de literatura, mas a nossa foi uma geração que precisou correr atrás do dinheiro: além do jornal, a maioria tinha um emprego público. Escrever contos e romances era privilégio do Dalton, que tinha a cerâmica do pai na Rua Comendador Araújo: quando a chaminé soltava fumaça, dizíamos que o Dalton "estava criando".
Comecei a vida de funcionário público com o Anfrísio (Siqueira), o Papa da Boca e alto prócer lupionista e atleticano. Primeiro na Fiscalização (uma carteirinha me dava direito a porte de arma); depois, na Arrecadação; e, finalmente, no Departamento de Divulgação e Turismo, dirigido por meu tio José Muggiati Sobrinho, também redator-chefe da Gazeta.
Em pouco tempo, aprendi tudo sobre a política paranaense e suas artimanhas. Orbitávamos também junto à Cultura Inglesa, à Aliança Francesa e ao Centro Interamericano [hoje Centro Cultural Brasil-Estados Unidos]. Um dos escritores visitantes mais notáveis foi o americano John Dos Passos, autor da trilogia USA (1938), que dirigiu ambulâncias na Itália com Hemingway na Primeira Guerra. (No Interamericano, no primeiro "arranha-céu" de Curitiba, o Moreira Garcez, em frente à Boca, o Adherbal teve o privilégio de acender o charuto famoso de Dos Passos.)
Em outubro de 1960, peguei um avião da Panair para Paris, onde fui estudar jornalismo. O Brasil tinha eleito Jânio presidente com uma avalanche de votos. Quando voltei a Curitiba, em fevereiro de 1962, fui reencontrar os amigos na confeitaria Guairacá. Queria falar de jazz e nouvelle vague, mas não me deram a menor chance: fui bombardeado por cobranças de "posicionamento" político. Daquela turma, Sylvio Back escreveu que "o comportamento de cada um identificava-se com o estilo dos tempos ideologizados que começavam a se delinear". Em 1962, o presidente era Jango e achava que estávamos a um passo do socialismo. A intelligentsia, inspirada pelo exemplo de Cuba, achava o mesmo. Mas a maioria conservadora do país e os militares não pensavam assim e começavam a se inquietar com a esquerda afoita que ameaçava tomar o poder.
Deu no que deu. A partir de 1964 e, principalmente, depois do arrocho do AI-5, a Boca Maldita começou a descobrir sua nova vocação, como foco de resistência democrática. Não por acaso, em 1984 foi escolhida como ponto de partida da série de comícios da campanha nacional Diretas-Já. Mais de meio século depois, entre mortos e feridos, salvaram-se alguns. Entre eles este que ficou para contar esta história.



