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A única estréia nas salas de exibição curitibanas neste fim de semana é o intrigante Filme Falado, do português Manoel de Oliveira. Embora já esteja disponível no país em DVD, vale a pena assistir ao longa-metragem na Cinemateca, onde entra hoje em cartaz. Ao contrário de outras fitas, que não perdem tanto de seu sentido quando exibidas em um aparelho de televisão, o ensaio cinematográfico de Oliveira clama por uma projeção em sala escura e sobre uma tela grande. Para evitar as distrações inevitáveis à experiência doméstica, como telefones que tocam, pausas para lanches e escapadelas até o banheiro.

Filme Falado tem como foco a professora universitária de História Rosa Maria (Leonor Silveira, habituée do filmes de Oliveira) e sua filha de 7 anos, Maria Joana (Filipa de Almeida). Em um navio, as duas vão atravessar o Mar Mediterrâneo a partir de Lisboa, rumo a Bombaim, na Índia. À medida em que as duas fazem paradas em portos da França à Turquia, o filme se transforma, também, em uma interessante aula de História, que pouco a pouco torna-se mais complexa com a aproximação do Oriente.

O filme tem início de forma até certo ponto profética, com a imagem de pessoas acenando em despedida para os passageiros do barco, que parte de uma doca lisboeta. Ninguém sairá incólume dessa jornada. A lição de História dada por Rosa Maria à pequena, porém curiosa e inquieta Maria Joana começa já na saída das personagens de sua terra natal. A menina quer saber o siginificado da palavra mito. Na medida em que a jornada avança, ela indaga à mãe, em Marselha, o que é uma lenda. Na Grécia, diante da Acrópolis, a menina quer descobrir o que as pessoas faziam na imponente construção clássica. A resposta da mãe é: "Elas veneravam seus Deuses".

De uma certa maneira, apesar de toda a ingenuidade de Maria Joana, saber "quem eram esses deuses" está no cerne da discussão proposta por Filme Falado, que sugere às viajantes – e aos espectadores – uma reflexão profunda sobre as distinções entre os mundos ocidental e oriental nos dias de hoje.

Ao mesmo tempo em que Rosa Maria tenta responder de maneira clara e objetiva todos os "porquês" levantados pela filha, Manoel de Oliveira, hoje aos 98 anos, levanta uma discussão elevada e profunda demais para o entendimento da pequena personagem, mas que, certamente, tem relevância e pertinência para qualquer um que acompanhe mais de perto os movimentos geopolíticos mundiais. Num planeta cada vez mais dividido por conta das dificuldade de compreensão e aceitação do outro, do distinto, embarcar na viagem de Rosa Maria e Maria Joana pode ser, também, uma oportunidade para pensar a respeito tanto da contemporaneidade quanto dos processos históricos que nela desembocaram.

Em um dos momentos mais emblemáticos do filme, Oliveira coloca numa mesma mesa quatro personagens que representam formas distintas de perceber a realidade. A convite do capitão do navio, um norte-americano vivido por John Malkovich (de Ligações Perigosas), sentam à mesma mesa de jantar uma cartesiana e niilista empresária francesa (Catherine Deneuve), uma ex-modelo italiana romântica e passional (Stefania Sandrelli) e uma grande atriz grega (Irene Papas). Cada uma das personagens, vividas por ícones culturais de seus países de origem, fala em seu respectivo idioma, defendendo em discursos por vezes inflamados idéias que sustentam suas respectivas visões de mundo, igualmente diversas, porém de alguma forma interligadas por uma idéia de Europa "coesa e civilizada".

Sem perceberem que estão na dobra entre dois mundos, os personagens, até agora sustentados pela confortável unicidade do eurocentrismo, se vêem, de repente, atropelados pelas transformações no jogo de forças mundial. O anúncio de que pode existir uma bomba no navio as lembram de que as certezas de outrora são precárias e de nada podem lhes servir num momento extremo como esse, quando o que está em jogo é a sobrevivência pura e simples. Rosa Maria e Maria Joana talvez não possam concluir a missão de encontrar respostas para tantas perguntas que ainda permanecem em aberto. Assim é a vida real. GGGG

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