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Womack no Montreux Jazz Festival em 2013: cantor desfrutou de seu próprio mito apenas no fim da vida, ao dialogar com a eletrônica sob a batuta de Damon Albarn, do Blur | Laurent Gillieron/Efe
Womack no Montreux Jazz Festival em 2013: cantor desfrutou de seu próprio mito apenas no fim da vida, ao dialogar com a eletrônica sob a batuta de Damon Albarn, do Blur| Foto: Laurent Gillieron/Efe

"Across 110th Street", seu maior sucesso, ultra autobiográfico, resumia sua poética e sua filosofia. A Rua 110 de que fala a canção fica entre o Harlem e o Central Park, em Nova York, perímetro de contradições que vão de um reformatório para jovens infratores a prédios chiques da burguesia do outro lado. "Eu era o terceiro irmão de cinco. Fazendo o que quer que fosse preciso para sobreviver. Não estou dizendo que o que fiz tava certo. Tentar dar um migué no gueto era uma luta diária", dizem os primeiros versos.

Bobby Womack (1944-2014) sobreviveu à infância pobre, ao vício, ao comportamento errático, à ambivalência ética e por um breve período ele chegou, no final da vida, a desfrutar de seu próprio mito – que ele mesmo tinha trabalhado durante a vida toda para dinamitar. Ao morrer, na última sexta-feira, aos 70 anos, Womack tinha, no legado, composições que foram gravadas por Rolling Stones ("It’s All Over Now"), Janis Joplin ("Trust Me") e Wilson Pickett ("I’m a Midnight Mover"), entre muitos outros. Tinha acompanhado artistas como Ray Charles, Sly and the Family Stone, Aretha Franklin, Dusty Springfield. E também passado por um processo de quase desaparição, de "artistiquicídio".

"Você me diz que eu sou uma lenda. Eu digo a você o que é uma lenda: uma pessoa que sobreviveu à tormenta", afirmou Womack, em entrevista no ano passado. Tinha, então, escapado de um tiro da ex-mulher, de um câncer e lutava contra o Alzheimer. "As coisas que aconteceram em minha vida me tornaram mais fraco, mas depois me fizeram mais forte. E agora, que estou indo para a América do Sul, muitas pessoas vão perguntar: quem é esse cara, Bobby Womack? Eu digo: para saberem, venham ver o show. Porque toda noite é diferente, nunca é igual", convocou.

Seu disco de 2012, The Bravest Man in the Universe (Lab344), o punha dialogando com a eletrônica, sob o comando de Damon Albarn, do grupo inglês Blur. "Creio que a coisa para mim aqui não é apenas estar aqui, testemunhando a história vindo e se repetindo, mas manter-me conectado com as coisas do meu tempo. Sou grato por ainda estar aqui e presenciando tudo."

Diferenciais

O que Bobby tinha de especial, dentro de um universo que abrigava gênios da música negra, como Marvin Gaye, Sam Cooke, Wilson Pickett, James Brown? Um coloquialismo absurdo, proximidade com o perigo e com a ternura, ao mesmo tempo, e um espírito livre e próximo da desordem.

Um apanhado de seus clássicos mostra que ele nos presenteou com uma pungente radiografia de um mundo de heróis comuns, populares "Ele é como uma garrafa na água/ Harry apenas flutua através da vida", cantava, na memorável "Harry Hippie" (1972).

Ele foi gospel no início, mas progressivamente foi fazendo a transição para o R&B, com a banda também familiar The Valentinos. Com seu mentor, Sam Cooke, aprendeu que tinha de se posicionar no mundo – impor sua personalidade, saber de que matéria era feito. Foi o que fez. "Todos manusearam a soul music de um jeito diferente. Sei que todos fizemos o mesmo tipo de música, aquela que vem do coração. O que eu fiz foi tentar não soar como nenhum outro, mas como eu mesmo."

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