Breve graça

• 0

"Uma esposa é como um guarda-chuva. Mais cedo ou mais tarde toma-se um táxi." Tal pérola machista contida na afirmação acima trata-se de um chiste, tipo breve e condensado de piada, que provoca o riso do ouvinte por meio da fusão entre dois campos de significados distintos e, aparentemente impassíveis de comparação.

Explicar as inúmeras técnicas aplicadas na elaboração de chistes é o objetivo da obra Os Chistes e Sua Relação com o Inconsciente, publicada em 1905, pelo médico neurologista e psiquiatra austríaco-judeu Sigmund Freud (1856 – 1939). Mesmo diante da constatação de que "ao desatarmos a técnica de um chiste, ele desaparece", ou seja, perde completamente a graça, Freud teve de alcançar o distanciamento necessário das piadas breves que analisou e comentou em tal obra, livrando-se da preocupação de acabar com o humor.

No entanto, mesmo após tomarmos conhecimento das conclusões de Freud – segundo o pai da psiquiatria, o chiste que abre o primeiro parágrafo estaria situado na categoria "vulgar", justificado por uma "forte atração do narrador pela ouvinte", e pela "espera de que esta sinta-se estimulada ou mesmo excitada, ao se dar conta da própria excitação de quem o conta" –, a comparação esdrúxula entre uma esposa e um guarda-chuva não perde seu efeito hilariante (pelo menos não para os membros do sexo masculino) mesmo diante de uma explicação detalhada não apenas da técnica que o originou, mas de seu significado literal.

Inspirado pelos exemplos e análises que Freud apresenta em O Chiste..., o escritor e ilustrador britânico Ralph Steadman decidiu transformar tais técnicas em desenhos baseados em situações vividas pelo próprio psiquiatra em Sigmund Freud, livro recém-chegado às prateleiras nacionais pelo catálogo da editora Ediouro.

Conhecido mundialmente por sua parceria de mais de três décadas com Hunter S. Thompson (pai do chamado jornalismo gonzo, morto em 2005), Steadman, além de ter acompanhado fisicamente algumas das insandecidas coberturas jornalísticas de eventos esportivos realizadas pelo jornalista, ilustrou grande parte de suas matérias e livros, entre eles, o clássico Medo e Delírio em Las Vegas: Uma Jornada Selvagem ao Coração do Sonho Americano, que também acaba de ser lançado no mercado editorial brazuca com as ilustrações originais de Steadman (Conrad. 216 págs., R$ 45) – o livro foi adaptado para o cinema em 1998, com direção de Terry Gilliam (Os Doze Macacos) e estrelado por Johnny Depp e Benicio Del Toro.

Destinado a provar que, apesar das opiniões de seus contemporâneos, que consideravam Freud "um tirano carente de humor, frustrado e obcecado por sexo", o psiquiatra era dono de um senso de humor "irônico, seco e, às vezes, venenoso", Steadman ilustra, por meio de seus traços finos a nanquim (manchados por borrões de tinta aqui e acolá, propositalmente, diga-se de passagem) um Freud caricato, em imagens altamente expressivas, de uma beleza particular e um tanto caótica – esta talvez uma das principais características dos desenhos, gravuras e colagens do artista, cujas ilustrações para livros como Alice no País das Maravilhas (Lewis Caroll) e Revolução dos Bichos (George Orwell) renderam-lhe prêmios significativos ao longo dos anos (leia mais sobre a obra do artista no quadro acima).

Em tempo: para os que não entenderam a piada do primeiro parágrafo, Freud explica: "Alguém se casa a fim de se proteger das tentações da sensualidade, mas a despeito disso descobre que o casamento não oferece a satisfação de necessidades algo mais intensas que o habitual. Da mesma forma, levamos um guarda-chuva para nos proteger da chuva e ainda assim nos molhamos. Nos dois casos, precisamos buscar uma proteção melhor: no segundo caso, devemos pegar um veículo público, e, no primeiro, uma mulher, acessível em troca de dinheiro".

* * * * *

Serviço: Sigmund Freud, de Ralph Steadman (Tradução de Paulo e Daniel Schiller. Ediouro, 120 págs., R$ 59,90).