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Uma das marcas registradas do cineasta norte-americano Robert Altman é a opção de construir seus filmes a partir da perspectiva dos muitos personagens que os povoam. Um tanto avesso à noção clássica do enredo hollywoodiano, com começo, meio e fim, o veterano diretor se utiliza das trajetórias dramáticas desses homens e mulheres para, no fim da linha, tecer um panorama sociocultural mais complexo, que diz respeito a todos. No clássico Nashville (1975), o microcosmos retratado era a capital americana da música country que dá título ao longa. Em Short Cuts (1993), é a vez da a multiplicidade humana dos habitantes da ultracosmopolita Los Angeles. Já em De Corpo e Alma (2003), o diretor faz uma espécie de investigação dos bastidores de uma companhia de dança. Seu mais recente filme, o tocante A Última Noite, não foge a esse paradigma, apresentando uma poética canção de amor ao rádio.

No longa-metragem, que estréia hoje em Curitiba, o que se vê na tela é uma feliz união de esforços entre Altman e Garrison Keillor, empresário, criador e apresentador de A Prairie Home Companion, um dos programas de rádio que está no ar há mais tempo nos EUA (31 anos), que dá o título original do filme.

O roteiro, assinado por Keillor, parte de um ponto de partida limí-trofe entre a ficção e a realidade: o suposto fim do programa, depois da venda da emissora e do velho teatro no qual é gravado. Tanto o radialista quanto Altman, ambos nascidos no meio-oeste norte-americano, sabem do que estão falando e, talvez por isso, o filme seja tão autêntico. Os dois dominam o humor, que oscila entre o bizarro e o caipira, comum a grande parte dos personagens. E também conhecem como poucos a riqueza da produção musical do interior dos Estados Unidos, algo já abordado pelo cineasta no magnífico Nashville.

Para o público brasileiro, que não domina esse universo, um tanto cifrado, A Última Noite certamente não terá a ressonância que teve nos EUA – é importante dizer aqui que o programa de rádio de Keillor é ouvido por um grande público, que com ele se identifica e nele encontra um refúgio de autenticidade e nostalgia. Ainda assim, é ótimo cinema.

Rodado no Fitzgerald Theater, em St. Paul, estado de Minnesota, A Última Noite traz impagáveis números musicais. Os melhores são de Yolanda e Rhonda Johnson (Meryl Streep e Lily Tomlin, perfeitas em seus papéis), últimas remanescentes de um grupo country antes composto de quatro irmãs, e dos desbocados cantores caubóis Dusty e Lefty (Woody Harrelson e John C. Reilly).

Outros personagens de destaque são Lola (a estrela teen Lindsay Lohan), filha de Yolanda, que se distrai escrevendo poemas sobre suicídio; e Guy Noir (Kevin Kline), um personagem que aparece no papel do "diretor de segurança" do programa, mas também toma ares de detetive, que remetem a Raymond Chandler e Dashiell Hammett.

Em meio à confusão e aos números musicais surgem duas figuras que de certa forma conduzem a narrativa. Uma delas é GK (o próprio Garrison Keillor), uma presença calma e bonachona, para quem o fim do programa não é uma tragédia, mas uma espécie de transição inevitável. A outra é uma mulher misteriosa (Virginia Madsen, de Sideways), espécie de anjo vestido de branco que assume a forma humana e bela de uma mulher que morreu ao ouvir uma piada sobre um pingüim. Elemento surreal, ela sempre surge em cena quando algo insólito está por acontecer.

Sincero, lírico e, acima de tudo, "altmaniano", A Última Noite não é para todos, mas é uma das melhores opções em cartaz nos cinemas da cidade. GGGG

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