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Maria Fernanda Cândido  e Michel Melamed interpretam Capitu e Bentinho já adultos na microssérie Capitu | Divulgação/Agência O Globo
Maria Fernanda Cândido e Michel Melamed interpretam Capitu e Bentinho já adultos na microssérie Capitu| Foto: Divulgação/Agência O Globo

Capitu traiu ou não Bentinho? A polêmica questão suscitada por Machado de Assis no romance Dom Casmurro não estará no centro da microssérie de cinco capítulos Capitu, dirigida por Luiz Fernando Carvalho, que começa a ser apresentada a partir de hoje, por volta das 22h55, na Globo.

Os episódios se concentram na infância e adolescência de Bentinho e Capitu, vividos respectivamente por César Cardadeiro e Letícia Persiles, na fase jovem, e Michel Melamed e Maria Fernanda Cândido, na adulta. Pierre Baitelli é o intérprete de Escobar.

Leia entrevista concedida por Luiz Fernando Carvalho ao Caderno G.

Gazeta do Povo - A sua adaptação de Dom Casmurro, com inúmeras liberdades poéticas, demonstra de certa forma a atemporalidade da obra mais famosa de Machado de Assis. Extrair do século 19 questões universais propostas pelo autor foi uma das intenções desde o início do projeto?

Luiz Fernando Carvalho – Como diretor, não me interessaria levantar uma simples reconstituição de época, porque isso não é o mais importante do texto. Então, fui atrás de coordenadas mais latentes, que têm muito a ver com a questão da passagem do tempo, da consciência da finitude das coisas, do trágico também, pois Dom Casmurro – por mais que ele negue e despiste – está incorporado ao trágico, está ligado de forma indelével a um tempo e a um espaço que não voltarão jamais. Logo, trato o tempo como um personagem e não como um elemento narrativo simplesmente, uma época específica – o final do século 19.

Esse drama, essa tragédia, essa comédia, essa barafunda toda pode acontecer em qualquer época. Os grandes autores da literatura, como qualquer grande criador, respiram uma universalidade e uma atemporalidade em suas obras. Na minissérie, estou reafirmando a dúvida presente em Dom Casmurro como parte do processo cultural da modernidade, como processo dialético dos dias de hoje, e acredito que isso não é amoral ou imoral, isso não é um pecado.

Em Hoje É Dia de Maria e nessas duas séries do Projeto Quadrante, há elementos comuns como, por exemplo, a teatralidade e uma estilização flagrante que extrapola o realismo. Há uma intenção em tratar as séries como um conjunto?

A idéia de trabalhar em um espaço que não fosse a realidade em si, mas que se constituísse como a representação de uma determinada realidade – assim como se dá quando estamos diante das linhas de um livro – sempre me interessou.

Estou propondo aos espectadores um jogo com a imaginação, um exercício tênue de visibilidades. Cabe, isto sim, aos intérpretes pegar na mão do espectador e trazê-lo para dentro do jogo. A realidade é erguida pela montagem. É ela que constrói este outro rigor: a linguagem. É um jogo. Não é uma narrativa que te desloca do tempo histórico, glamourosa, falsa, alienante; mas sim, uma pequena tentativa de trabalhar no espaço misterioso da ficção, assim como faz Machado de Assis, que se distancia da fabulação em várias passagens. Como o próprio escritor diz, "a realidade é boa, mas o realismo não serve para nada".

Enfim, Capitu é um relato que existe entre a realidade e a imaginação de todos nós.

Dom Casmurro é considerada uma das obras do realismo no Brasil. E, no entanto, você pensou o livro dentro de um formato operístico, moderno e não-realista, a partir da recusa do autor em ser rotulado como realista. Como foi enfrentar o desafio de adaptar um clássico da literatura brasileira, já tão lido e relido, desta forma ousada sem, no entanto, correr o risco de traí-la?

Concordo com Machado quando afirmava que seus romances, principalmente os finais, não poderiam ser chamados simplesmente de realistas. O que fiz foi reafirmá-lo em termos de conteúdo e linguagem, sendo extremamente fiel ao seu texto. Quando estava elaborando as cenas, levei em conta a dificuldade que os jovens têm na primeira leitura dos romances de Machado, principalmente em função da obrigatoriedade imposta no ensino básico.

Pensei na abrangência do veículo e na necessidade de se desfazer esse tal preconceito dos adolescentes que, nos dias de hoje, estão plugados ao mundo todo, às várias manifestações artísticas, em várias línguas, via internet. Em Dom Casmurro, no final do século 19, o escritor já propunha essa interatividade com os leitores. Então, a síntese do texto é do Machado. Agora, é claro que eu espelhei aquelas situações e as lancei para outras relações de imagens e sons, procurando um diálogo com as possibilidades de encenação da modernidade, abrindo o texto a outras visibilidades. Em outras palavras, sua escrita é moderna! Machado está vivo!

Você intitula a série com o nome da personagem feminina. Há uma mudança de foco em relação ao romance, que tem como narrador o protagonista?

Não. Em Capitu nosso querido narrador inconfiável é também Dom Casmurro e não há uma única palavra ou vírgula que não seja de Machado. A mudança de nome veio de minha intuição, falo assim porque foi de um estalo que de repente falei: Capitu! Foi de estalo, sem nenhum processo racional, que senti Capitu como um estopim, um elemento detonador de todos os processos do livro.

Não digo com isso que Bentinho não seria Casmurro caso a vida não tivesse entrelaçado os dois, mas a natureza luminosa (transcendente até) de Capitu deve ser celebrada sem preconceitos ou julgamentos. De minha parte, esta mulher dionisíaca é uma força da natureza, com tudo que ela tem de provedora e de trágica, e não, ao contrário, uma fabricação da cultura da elite branca como é Bento Santiago. Então, a opção por esse título vem da tentativa de dialogar também com a personagem Capitu, que no próprio texto do Machado é tão misteriosa e enigmática.

Como trata na série o velho – e já debatido à exaustão – enigma sobre se Capitu traiu ou não traiu Bentinho?

A dúvida é um grande tema, eu não absolvo Capitu e não a condeno. É um personagem que pertence ao mistério e pertence a essa interação de cada leitor. Cada um vai imaginar a sua Capitu e decidir de acordo com suas coordenadas, se ela é ou não culpada, se a fruta já estava dentro da casca. De minha parte, procuro traçar um ensaio sobre a dúvida.

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