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História da Literatura Ocidental, de Otto Maria Carpeaux. Leya, 3.040 págs. (4 volumes). R$ 179,90 (venda exclusiva pela Livraria Cultura).

Ao escapar do nazismo crescente na Europa da década de 1930, o bibliófilo Carpeaux – que conhecia a fundo de Homero a Salinger e de Dostoiévski a Álvares de Azevedo – veio para o Brasil. Seu primeiro destino no novo continente: Rolândia, no Paraná. Ao lado, os quatro volumes da sua obra monumental, História da Literatura Ocidental.

Otto Maria Carpeaux está de volta com uma nova edição de sua monumental História da Literatura Ocidental, publicada há 65 anos. Antes de falar do meu Carpeaux, algumas pinceladas sobre o homem: imaginem nascer na Viena de 1900, a cidade de Freud, Klimt, Kokoshka, Kraus, Mahler, Schönberg, Schnitzler, Wittgenstein e Zweig... E de um medíocre pintor de cartões postais chamado Adolf Hitler. Filho de pai judeu e mãe católica, Otto Karpfen formou-se em química pela Universidade de Viena, mas nunca exerceu a profissão. Estudou Filosofia (doutorou-se em 1925), Matemática (Leipzig), Sociologia (Paris), Literatura Comparada (Nápoles) e Política (Berlim). Em 1930, casou-se com Helena, companheira de toda a vida.

A música cercou Carpeaux por todos os lados: o pai, advogado, era também pianista; a mãe, violinista; a mulher, cantora lírica. Em 1933, abandonou o judaísmo, converteu-se ao catolicismo e acrescentou ao seu nome Maria e (por pouco tempo) Fidelis. Jornalista, tornou-se homem de confiança dos dois últimos premiês da Áustria. Com a anexação do país à Alemanha nazista, Otto e Helena escaparam em 1938 para a Bélgica. Com o início da guerra, em 1939, mudou o sobrenome de Karpfen ("carpa" em alemão) para o afrancesado Carpeaux e veio para o Brasil. Curiosamente, seu primeiro destino, na condição de imigrante, foi Rolândia, no Paraná, para trabalhar no campo. Longe de ser a salvação da lavoura, Carpeaux encontrou um espaço para escrever sobre literatura no Correio da Manhã, do Rio. Já conhecia inglês, francês, italiano, alemão, espanhol, flamengo, catalão, galego, provençal, latim e servo-croata. Em um ano aprendeu português e começou a escrever na língua, com desenvoltura e verve. Em 1950, tornou-se redator-editor do jornal, mas a Revolução de 1964 atropelou Carpeaux e o Correio e praticamente calou sua voz libertária.

Segundo o crítico de arte José Roberto Teixeira Leite, Carpeaux era totalmente gago, o que o afastou da cátedra e das universidades para confiná-lo em bibliotecas, gabinetes e redações. Teixeira Leite fazia dele um retrato impiedoso e meigo: "Carpeaux foi um dos homens mais feios que conheci. Sua aparência neanderthalesca, todo mandímbulas e sobrancelhas, fazia a delícia dos caricaturistas: parecia, sem tirar nem pôr, um troglodita, mas troglodita de ler Homero e Virgílio no original, de se deliciar com Bach e Beethoven e de diferenciar entre Rubens e Van Dyck".

Convivi com Carpeaux na redação da Manchete entre 1972 e 1977, quando ele foi o colaborador mais assíduo da série As Obras-primas que Poucos Leram (lançada em 2005 por Heloisa Seixas, numa antologia de quatro volumes para a editora Record). No prefácio, Heloisa comenta: "O leitor talvez se pergunte como era possível uma revista popular de informação, famosa também por suas matérias sobre concursos de fantasias e bailes de carnaval, abrir toda semana cinco ou seis páginas para artigos sobre literatura – de tal categoria e profundidade". Esse foi um dos muitos paradoxos da Manchete, que usava o slogan "todas as revistas numa só." A série publicou 200 artigos, dos quais pelo menos 30% foram assinados por Carpeaux (que precisava daquele dinheiro).

Versatilidade

Ele escreveu sobre Dom Quixote, Morte em Veneza, Crime e Castigo, Madame Bovary, enveredou por Edgar Allan Poe (Histórias Extraordinárias) e Conan Doyle (O Cão dos Baskervilles), pela Divina Comédia de Dante e por peças tão diversas como Romeu e Julieta, de Shakespeare, e Esperando Godot, de Samuel Beckett.

Mas Carpeaux também ousou escrever sobre O Apanhador no Campo de Centeio. Aos 76 anos, ele assim definia o herói inconformista de J.D. Salinger: "O valor que Holden personifica, nesse mundo estúpido e sórdido dos adultos, é o mesmo que levou para as suas aventuras o herói prototípico de toda a ficção americana: o Huckleberry Finn de Mark Twain simboliza o sonho americano de liberdade criadora".

Encontro com Kafka

No seu texto para a Manchete sobre O Castelo, Carpeaux conta como conheceu Franz Kafka numa visita a Berlim em 1921: "Retirei-me para um canto na janela, já ocupado por um rapaz franzino, magro, pálido, taciturno. Eu não podia saber que a tuberculose da laringe, que o mataria três anos mais tarde, já lhe tinha embargado a voz. Apresentou-se: ‘Kauka.’ Não entendi, perguntei: ‘Como é o nome?’ Repetiu: ‘Kauka.’ Não sabia eu outra coisa para dizer que: ‘Muito prazer.’ E este foi o diálogo todo; não muito espirituoso, mas histórico. Ao sair do apartamento, perguntei a um amigo: ‘Quem é aquele rapaz magro com a voz rouca?’ Respondeu: ‘É de Praga. Publicou uns contos que ninguém entende. Não tem importância’".

Carpeaux conta que voltou a Berlim, em 1926, para cobrar uns pagamentos que uma editora lhe devia: "O diretor me deixou esperar na antessala, mais de meia hora. Num cantinho vi um montão de livros, todos iguais. Tirei um exemplar, abri: O Processo, romance de Franz Kafka. Distraído, comecei a ler sem prestar muita atenção, quando o ex-diretor da ex-Brücke me bateu nas costas. ‘Pagar não posso, querido, mas se você quiser, pode levar, em vez de pagamento, esse exemplar e, se quiser, a tiragem toda. O Max Brod, que teima em considerar gênio um amigo dele, já falecido, me forçou a editar esse romance danado. Estamos falidos. Nem vendi três exemplares. Não vale nada’. Fiquei triste. Tinha esperado um pagamento de 130 marcos e o homem me quer dar seu encalhe. Agradeci vivamente, e com certa amargura. Mas levei comigo aquele exemplar que já tinha aberto. Foi a maior burrice de minha vida inteira. Toda aquela tiragem foi vendida como papel velho e inutilizada. Um exemplar da 1.ª edição de O Processo é hoje uma raridade para bibliófilos. Nos Estados Unidos paga-se US$ 1 mil por um livro desses, ou mais. Se eu tivesse aceitado o presente, seria hoje milionário...".

Na fuga da Europa, Carpeaux perdeu toda a sua biblioteca, mas alguns exemplares, que havia emprestado ao cônsul geral dos Estados Unidos em Viena, lhe foram devolvidos, entre eles O Processo de Kafka, hoje na seção de livros raros da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo.

Artigos

Como subeditor, depois editor, da revista Manchete, eu recebia os originais das mãos do próprio Carpeaux e os encaminhava para a publicação, escolhendo as imagens que ilustravam seus textos. Antes de me entregar as laudas impecavelmente datilografadas por sua mulher, Carpeaux ainda se demorava numa ou noutra correção de última hora a caneta. (Devo ter ainda um ou dois destes "manuscritos" entre meus papéis.) Lembro quando Carpeaux foi atropelado bem em frente do prédio da Manchete. Nada sofreu. Subiu com o terno cinza levemente sujo da poeira do asfalto e entregou o seu artigo como se nada tivesse acontecido. Não teve a mesma sorte o acadêmico R. Magalhães Jr, redator da revista, também atropelado quando se dirigia para o edifício da Manchete na Praia do Flamengo, em 1980. Magalhães, como Carpeaux, era um dos mais frequentes colaboradores das Obras-primas e um ferrenho rival literário do mestre vienense.

Quando terminou a série As Obras-primas que Poucos Leram, Carpeaux ainda publicou algumas colaborações na Bloch, principalmente por intermédio de Carlos Heitor Cony, seu companheiro no Correio da Manhã. Foi pelo Cony, de forma insólita, que eu soube da morte de Carpeaux, na sexta-feira de carnaval, 3 de fevereiro de 1978. Estávamos num botequim da Praça Tiradentes, conferindo a folia gay no seu grande dia, quando Cony chegou e disse que vinha do enterro do Carpeaux, naquele fim de tarde. Morrera do coração, de repente. Pensei na definição de Carpeaux, no ensaio sobre a Divina Comédia para a Manchete: "Dante é mesmo o protótipo dos exilados, daqueles que não voltam nunca mais para a pátria". E lembrei da sua última frase no ensaio, intensamente autobiográfica: "Como Petrarca, pace non trovo (‘paz não encontro’), a não ser talvez no último momento, quando a noite chamará para partir e quando, tendo visto tudo pela última vez, me lembrarei pela última vez de Dante e de seus versos: ma la notte risurge e oramai – è da partir, che tutto avem veduto. (‘Mas a noite ressurge e é hora de partir, pois já vimos tudo’)".

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