• Carregando...
 | Daniel Castellano/Gazeta do Povo
| Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo

Foi em uma cidade qualquer, perdida entre um vale e uma serra. Lá havia uma igreja tradicional, de madeira. Uma praça sem cor e uma delegacia vazia. Foi nela que te conheci de verdade.

Está sendo legal, e te adoro. Mas veja. Não te peço para ficar ao meu lado para sempre, não seria justo. Porque, em todas as vezes em que meu corpo está ao lado do seu, tenho a vontade de sair correndo, viver a vida em Marte, pisar na Lua, fazer um golaço, ir para a Islândia, participar de uma marcha atlética. Só para ter histórias para contar, causos infinitos, que me façam permanecer, e não passar. Então, a decisão de se afastar ou não seria somente sua.

Também não seria muito legal da minha parte se comprasse um par de alianças. Lembrar que estamos "juntos" de alguma forma. Pois é certo que olharia para elas, em uma tarde fria de domingo em que você provavelmente não estaria perto, e sentiria ainda mais a sua falta. Porque as alianças são placebos simbólicos e uma redenção material a algo que é, ainda é, inexplicável. Elas não substituem nem o dedo em que moram.

Penso, então, em pular etapas pré-estabelecidas e te pedir em casamento de uma vez, surpreender-te. Você sempre gostou disso, de se espantar com coisas bobas. E aí seria uma família só (eram dois ou três filhos?), uma casa com varanda. Uma cama king size para todos os dias e todas as noites. Mas o problema, pensando bem e lembrando de uma conversa engraçadíssima que tivemos quando estávamos bêbados e felizes, é que não haveria dia sim e dia não. Não haveria a ausência, alimento da saudade. Te quero todos os dias, mas não iria te querer da mesma forma todos os dias. Entende?

Não te ver nunca mais é uma possibilidade. Arrancar o mal pela raiz. Tá, ficaria triste um tempo, mas a essa altura da vida nós dois sabemos que o tempo vence tudo. A convenção é a terceira idade do amor. Entretanto, somos mais do que isso. Pois poderia muito bem estar no sofá, com os pés para cima, e querer te ligar, em uma noite chuvosa de terça, só para reclamar do cara do trabalho. Ou o Veiga, aquele porteiro que sempre puxa papo quando estou atrasado. Lembra daquele dia em que, deitados de costas na grama do jardim, discutíamos quem era melhor, Pélico ou Cícero, ou daquele dia em que acho que brigamos: ficamos um dia inteiro – uma eternidade! – sem trocar olhares. Mas, sentados em um mesmo banco velho de madeira, inevitavelmente nos aproximamos um do outro, abrindo o sorriso na mesma velocidade como duas crianças mimadas? Pois éramos, agora acho que somos, como irmãos. Por isso seria uma judiaria não te ver nunca mais. Desisto da ideia, oficialmente.

Agora chove, e então façamos assim: ficamos juntos. O tempo que der, da forma que der. Decoramos esse texto e, caso algo dê errado, errado mesmo, caso cheguemos a alguma situação incontornável, em algum sentido, apresentamos os argumentos do parágrafo acima. Sugiro que guarde essa carta muito bem. E não se esqueça de ler seu cartão de boas festas. Ele está na cômoda, ao lado do seu presente de Natal – atrasado, como nós.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]