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"Aconteceu faz muito tempo mas eu ainda lembro bem. Eu estava numa pequena cidade do interior, tinha ido lá fazer um serviço, fiquei hospedado num pequeno hotel, o único que tinha e era ruim. O quarto era sujo e fedia. A cama em que eu dormia estava cheia de pulgas, o lençol tinha furos, o cobertor estava mofado, eu perdia o sono, a lâmpada era fraca, assim eu não conseguia ler a Bíblia que eu trouxera, sempre leio um trecho e rezo antes de dormir. Resolvi sair e respirar o ar da rua na noite escura, vou andando devagar, o bar e o restaurante da cidade já estavam fechados, não tinha cinema, mas fiquei por ali sem nada para ver. Na praça do centro tinha uma pequena igreja, fui até lá e a porta não estava fechada, entrei, estava escuro, mas as velas do altar estavam acesas, e tomei um susto com o vulto que vi, mas era um padre que me perguntou: ‘Veio rezar a esta hora?’"

Trecho de "Coisas da Noite Escura", parte de Rremembranças da Menina de Rua Morta Nua e Outros Livros.

No medíocre Memórias de um Homem Invisível, Chevy Chase encarna (talvez esse não seja o termo adequado) um executivo cujas moléculas desaparecem depois de sofrer um acidente absurdo. Ele tem de escapar da CIA e resolver sua relação com Daryl Hannah. Até hoje, o filme dirigido por John Carpenter não tem qualquer significado especial para a história do cinema. É só mais um entre as centenas de produções expelidas anualmente pela indústria americana e passaria despercebida por muitos.

Mas Valêncio Xavier não faz parte da maioria. Pegou o filme de Carpenter e o incluiu em um conto erótico chamado... "Memórias de um Homem Invisível", o primeiro de Rremembranças da Menina de Rua Morta Nua e Outros Livros (Companhia das Letras, 144 págs., R$ 38,50).

O autor, de 73 anos, chegou a realizar alguns curtas-metragens premiados, como Caro Signore Feline, trabalhou em jornal – durante anos, foi colaborador da Gazeta do Povo –, além de escrever e produzir para a tevê. Por azar ou por acaso, seu esforço criativo rendeu mais livros que filmes, embora seus textos sejam, em uma palavra (e por conseqüência), cinematográficos.

Enquanto O Mez da Grippe se baseia sobretudo em notícias publicadas pela imprensa e Minha Mãe Morrendo e o Menino Mentido, carregado de referências autobiográficas, é pontuado por recortes de todo tipo de publicação, Rremembranças... – em português arcaico, escrito assim mesmo, com dois erres no começo – é a obra em que o cinema e a tevê mais aparecem. É também o mais fotográfico dos três.

Na história-título do livro, a televisão deixa de ser apenas uma referência para tomar conta da narrativa. O episódio da menina de rua encontrada morta em uma espécie de trem-fantasma decadente de um parque de diversões na cidade de Diadema (SP) é apresentado por meio da retórica sensacionalista do extinto programa Aqui Agora, exibido pelo SBT.

"Um sumiço que não foi notado, porque menina de rua ela só de vez em quando ia dormir na casa de sua avó, nove anos de idade. Nove, apenas nove anos de idade. Uma menina de rua havia sumido. Onde estava. Estava morta." Transcrições como essa, da fala de Gil Gomes (comentarista célebre por narrar a notícia com entonações dramáticas), conseguem ser involuntariamente cômicas, apesar de tratarem de um tema trágico – inclusive com a omissão do nome da menor morta.

À medida que a história se desenvolve, entram os recortes de jornal e as intervenções do autor. Não bastasse o enigma de quem teria sido o assassino, as notícias não parecem concordar na idade da vítima – uns dizem 8, outros, 9 anos.

Além de oferecer alguns dos elementos caros à obra de Xavier – sexo, crime e mistério –, a história da menina de rua mostra a obscenidade de um certo tipo de imprensa parasita, dada a ruminar fatos, usar aquilo que lhe interessa e cuspir o que não pode aproveitar. Pouco importa as conseqüências ou implicações de uma notícia, se ela tem as características dramáticas capazes de dar audiência, deve ser explorada sem escrúpulos.

A menina de rua foi estuprada e assassinada. Diziam que era viciada em crack, que não conhecia seus pais e que dois funcionários do parque foram vistos com ela pouco antes do crime. Um recorte de jornal traz a legenda "Última notícia sobre ... (o nome não é revelado) publicada na imprensa". O texto fala apenas de mais uma suspeita. Não há qualquer dica de que a polícia resolveria o caso.

Xavier desencava as lembranças (ou "rremembranças") da menina de rua assassinada como um mensageiro das trevas que muitos se esforçam para ignorar ou esquecer. Primeiro, a garota sem nome nem idade definida serviu ao desejo criminoso do homem que a matou. Depois, atendeu ao sadismo do público que ouviu a história como quem assiste a uma telenovela.

Das sete histórias de Rremembranças... – ou "livros", segundo diz o título –, apenas uma não usa fotos e não faz menção ao cinema nem à tevê: "O Barqueiro da Morte", cujo desfecho acontece por meio de uma figurinha rara das balas "Zéquinha".

"Mulheres em Amores" fala do amor proibido entre duas mulheres do século 16, perseguidas e mortas pela Igreja como hereges. "Sete (7) o Nome das Coisas" se assume como "uma história sem sentido". Depois de listar dados relacionado à mística do número sete, citando das letras do Alcorão aos pecados capitais, o enredo descamba para abuso sexual e morte sem qualquer explicação.

"Macao" utiliza fotografias feitas pelo autor e por Cláudia Suemi Hamasaki para compor "um texto em imagens", relacionado à parte do território chinês dominada por portugueses. São 30 fotos ao todo, mostrando cenas de miséria, fé e esperança. Algumas foram tiradas da tela de um televisor exibindo filmes antigos – há até o indefectível The End fechando o conto, além de referências à História Imortal (1968), de Orson Welles, e a Camões.

"Coisas da Noite Escura" serve de epílogo a um livro onde a morte se insinua em quase todas as páginas. Cruzes enfeitadas com flores em um local que parece ser um cemitério à noite anuncia a narrativa de apenas um parágrafo em que o autor descreve sua própria morte, ocorrida em uma pequena cidade do interior pelas mãos de um padre "de rosto cinzento e olhos vermelhos". O bar e o restaurante estavam fechados, mas a igreja não; Valério vira Valêncio e o autor, no fim, anuncia "Estou morto". Enigmas de uma obra incomum e provocadora. O mais próximo que um livro jamais chegou de ser um filme.

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