Cada cidade tem um centro móvel, que varia conforme os interesses de quem a visita. Em Coimbra, embora tenha apreciado a belíssima Biblioteca Joanina (e demais dependências da Faculdade de Direito) e o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, ruínas recentemente abertas ao público, não eram estes os pontos que me atraíam. Havia feito o passeio para ver a Casa-Museu Miguel Torga.
Fui levado ao bairro classe média de Santo António dos Olivais, mais especificamente à Praceta Fernando Pessoa, pelo professor Pires Laranjeira, grande especialista em literaturas africanas da Universidade de Coimbra. Nós nos conhecíamos apenas por e-mail.
Embora tivesse frequentado a casa de Torga com o autor vivo, era a primeira vez que Pires Laranjeira voltava ao sobrado agora funcionando como museu.
A visita foi divertida, paramos diante de cada móvel e peça de arte, a maioria oriunda de antiquários (com um passado pobre, Torga não herdou mobiliário antigo), apreciando o gosto ao mesmo tempo rústico e requintado do escritor. Por meus vínculos com este objeto, o que mais me encantou foi uma máquina de escrever portátil.
Pires Laranjeira disse que também tinha aprendido a datilografar em um teclado daqueles. Olhei para as barras com letras em uma disposição estranha. Diante de minha ignorância, ele explicou:
– Este é o teclado Cesar Ropz.
Em vez do clássico ASDFG, do padrão universal de origem norte-americana (o QWERT), a sequência HCESARAROPZ, batizado de HCESAR ou CESAR ROPZ como uma forma de humanizar o produto industrial.
Informei-me. Este padrão foi imposto em Portugal, via decreto, por Salazar, em 1937, durante a Ditadura Nacional. É uma adaptação com base na maior frequência das letras em português e dos acentos usados na língua para que se ganhasse tempo na datilografia. Os fabricantes de máquina eram orientados a modificar o mecanismo quando tinham que exportá-las para Portugal. As autoridades lusas não aceitavam a entrada no país do modelo internacional. Também proibiam livros perigosos e venenos como Coca-cola. São as aberrações próprias do nacionalismo, e isso em um período em que o mundo estava sendo interligado pelo rádio. Alguns vendedores trocavam apenas a teclas (sem alterar os martelos com as letras) para passar na alfândega, permitindo que os novos proprietários cometessem o ato extremamente nocivo à pátria de recolocá-las na posição original e escrever por um método que, além de desperdiçar tempo, era antinatural no idioma.
– Se o teclado português só era obrigatório nos locais públicos, por que Torga preferia uma máquina customizada pela ditadura? – eis a pergunta que me fazia.
Não era por respeito a Salazar. Talvez fosse por algum apego aos seus conterrâneos, que a usavam. Ou para evitar uma atividade escritural dupla (uma espécie de bilinguismo de dedos): ter uma máquina HCESAR no seu consultório médico e outra QWERT em casa.
Cheguei à conclusão de que nenhuma destas hipóteses era provável. Ele simplesmente aprendera a datilografar neste padrão e se apegara a uma dança específica das mãos sobre o teclado. Somos apegados demais aos nossos hábitos de escrita.
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