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O francês Michel (Jean-Paul Belmondo) e a americana Patricia (Jean Seberg) se conhecem enquanto ela vende jornais no Champs-Elysées | Fotos: Divulgação
O francês Michel (Jean-Paul Belmondo) e a americana Patricia (Jean Seberg) se conhecem enquanto ela vende jornais no Champs-Elysées| Foto: Fotos: Divulgação
  • As cenas internas são todas rodadas num estúdio de fotografia em Paris
  • Os cabelos curtos de Jean Seberg anunciaram a
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"É segunda-feira, Georges de Beauregard, está amanhecendo, a partida de pôquer vai começar," escreve um cineasta pobre a um produtor sem dinheiro. "Espero que lhe traga uma boa grana. Quero agradecer sua confiança em mim. Espero que o seu filme seja de uma bela simplicidade ou de uma simples beleza. Sinto muito medo. Estou muito emocionado. Tudo vai bem." O cineasta era Jean-Luc Godard, a data 17 de agosto de 1959, o primeiro dia de filmagem de À Bout de Souffle/Acossado.

O roteiro inicial foi escrito pelo colega de Godard na revista Cahiers du Cinéma, François Truffaut. Em 1957, num trem a caminho do Festival de Cannes, ele leu num jornal uma pequena notícia sobre um jovem que roubou um carro diplomático e matou um policial quando rodava na estrada para Le Havre. Ele já havia assaltado uma drugstore nos Estados Unidos e, no navio de volta, se apaixonou por uma jornalista norte-americana. Truffaut fantasiou que o rapaz roubou o carro para ir ao encontro da moça. O roteiro, esboçado em poucas folhas, passou de mãos em mãos durante dois anos.

Hiroshima Mon Amour, de Alain Resnais, e Os Incompreedidos, de François Truffaut, obtêm um sucesso retumbante no Festival de Cannes de 1959. Godard se anima para rodar o seu primeiro longa-metragem. A partir do rascunho de Truffaut, escreve sua própria versão, mais desesperada e sombria, inspirada nos filmes-B americanos. Modela o personagem de Jean-Paul Belmondo no ícone do cinema noir, Humphrey Bogart. Inclui até uma cena em que Belmondo admira um cartaz de Bogey na vitrine de um cinema.

A história segue o esquema clássico do boy meets girl, mas termina sem happy end. O mocinho é um bad boy e a mocinha acaba se revelando uma bad girl, uma delatora. Michel Poicard rouba um carro em Marselha, mata a tiros um policial que o persegue de moto, chega a Paris sem dinheiro, procura sua namorada, a americana Patricia Franchini, que vende jornais dos EUA no Champs-Elysées.

A imagem da garota de camiseta amarela e jeans apregoando o New York Herald Tribune é particularmente nostálgica para aqueles que, como eu, viveram na Paris da época. (Bertolucci a mencionaria em seu filme de 2003, The Dreamers/Os Sonhadores). Belmondo, um ilustre desconhecido, que já tinha feito um curta dirigido por Godard, Charlotte et Son Jules, nada tem a perder e se diverte com sua caricatura de Bogey. Não acredita que o filme chegue um dia às telas dos cinemas. Numa cena particularmente cáustica, no início do filme, ao volante do conversível (pertencente a um produtor de filmes pornô que ajudou a financiar o filme), ele olha para câmara e, cigarro entre os lábios, diz: "Se você não gosta da montanha; se não gosta da praia; se não gosta da cidade; então vá se f****!"

Jean Seberg (Patricia), arrisca mais. Revelada em dois filmes de Hollywood, dirigidos por Otto Preminger (Santa Joana, 1957; e Bom Dia, Tristeza, 1958), tem um nome a zelar. No início da filmagem, arrepende-se de ter aceito o adiantamento de US$ 12 mil (um sexto do orçamento previsto), mas logo se adapta ao ritmo frenético das filmagens. Escolhida entre oito mil candidatas para o papel de Joana D’Arc, guarda os cabelos curtos da tosa a que foi submetida para interpretar a santa que morreu na fogueira. E antecipa o visual da mulher dos anos 1960 – inquieta, independente às raias da rebeldia. Deixa-se filmar por uma câmara manual, sem maquiagem, à luz natural, sem cordas de proteção, em pleno Champs-Elysées. "É tão contrário aos métodos de Hollywood," comentou, "que me tornei totalmente natural."

O ritmo nervoso de Acossado é sublinhado pela trilha de jazz do pianista Martial Solal; Godard segue o caminho aberto por Louis Malle e Roger Vadim, que usaram Miles Davis e o Modern Jazz Quartet respectivamente em Ascensor para o Cadafalso e Aconteceu em Veneza. Os diálogos (escritos por Godard durante a noite e a madrugada) só chegam às mãos dos atores nas manhãs de filmagens. Além da dupla principal, ele conta com um punhado de amigos para os papéis coadjuvantes: o jornalista e escritor Daniel Boulanger faz o Inspetor Vital; o cineasta Jean-Pierre Melville, o escritor Parvulesco, que Patricia entrevista durante uma coletiva no aeroporto; e o próprio Godard aparece numa ponta como informante da polícia.

As cenas internas são todas rodadas num estúdio de fotografia na Rue Campagne Première, onde, em 19 de setembro, é filmada a cena final em que Michel, depois de dedurado à polícia por Patricia, é baleado pelas costas e, caído no asfalto, balbucia a fala final, antológica:

MICHEL: É uma grande roubada.

PATRICIA: Que foi que ele disse?

VITAL: Que você é uma roubada.

PATRICIA: O que é uma roubada?

A pergunta de Jean Seberg, com seu charmoso sotaque americano ("Quest-ce que c’est ‘dégueulasse’?") sela um dos grandes filmes cult do século 20 – 89 minutos de pura arte, ilustrando a máxima godardiana: "O cinema é a verdade 24 fotogramas por segundo."

Lançado em 1960, Acossado ganha os prêmios Jean Vigo e o de melhor diretor do Festival de Berlim; em 1961, o prêmio dos críticos de cinema da França; e, em 1962, o Bafta de melhor atriz para Seberg. O próprio Godard faz uma espécie de remake em cores em 1965, Pierrot le Fou/O Demônio das Onze, em que Belmond encarna de novo o fugitivo suicida. (Em 1983, o americano Jim McBride faria um remake com o mesmo título, Breathless/A Força do Amor, com os papéis invertidos: um americano (Richard Gere) e uma francesa (Valérie Kapriski).

O crítico Ruy Gardnier, analisando a cena dos dois amantes no quarto, tentou resumir intelectualmente o indefinível de Godard: "Os personagens estão à bout de souffle ("ofegantes"), vivendo perigosamente até o fim (essa é uma das inscrições do filme), Michel Poiccard (Belmondo) é o desejo incontrolado e Patricia (Seberg) é a preservação (ela carrega um filho dele). Na pele dela, Godard encarna o desejo do próprio registro cinematográfico, algo da permanência do instante; na pele dele, vive o intenso desejo de fazer cinema e poder morrer por ele, logo viver cinema exclusivamente. Nesse ínterim, a possibilidade de aguardar dez segundos para ver Patricia sorrir."

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