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Cena de “Papa Francisco : Conquistando Corações”, em cartaz nos cinemas | Divulgação/
Cena de “Papa Francisco : Conquistando Corações”, em cartaz nos cinemas| Foto: Divulgação/

O papa está entre nós, um ano depois de Jesus Cristo ressuscitar e assistir a uma corrida de bigas. Em torno deles, famílias discutem seus problemas, casais enfrentam o drama de uma doença terminal e um estudante desafia o professor de filosofia que insiste em dizer que Deus está morto. Todas essas tramas chegaram recentemente às telas iluminando um novo gênero, o do cinema cristão. Trata-se de um mercado em ascensão, que se apoia no marketing junto a igrejas e religiosos e começa a colecionar resultados quase divinos de bilheteria.

Mas nem sempre foi assim. O cinema não foi criado em seis dias e tampouco foi escolhido como lazer pelos cristãos no sétimo. Por décadas a relação entre igrejas e filmes foi conturbada, com mais atritos que elogios, mais críticas a abordagens consideradas pagãs do que o reconhecimento de que a arte pode trazer ensinamentos religiosos. Os dois lados praticamente só se falavam quando uma produção como “A Última Tentação de Cristo” (1988) era lançada: a obra de Martin Scorsese, que mostra um sonho de Jesus em que ele aparece casado com Maria Madalena, foi alvo da ira de cristãos, a ponto de fundamentalistas atearem fogo numa sala de cinema de Paris.

A mudança de postura veio da percepção de que um filme pode alcançar mais gente do que uma pregação aos domingos. Um bom exemplo está no trabalho de dois irmãos americanos, pastores da Igreja Batista de uma cidade com menos de 100 mil habitantes na Georgia. Alex e Stephen Kendrick fizeram em 2003 seu primeiro longa-metragem, “A Virada”, sobre um vendedor de carros que toma rumo na vida ao aceitar Cristo. Para concluir a obra, eles reuniram voluntários, pegaram equipamento emprestado e gastaram apenas US$ 20 mil.

Nos cinemas, “A Virada” teve um lançamento discretíssimo, arrecadando US$ 37 mil. Mas o que aconteceu em DVD iluminou o caminho dos Kendrick. Foram 300 mil cópias vendidas, semeando o terreno para outros quatro filmes, todos de baixo orçamento e com retorno milionário. O último foi “Quarto de Guerra” (2015), um drama sobre uma família em crise que custou US$ 3 milhões, mas foi lançado pela Sony e lucrou US$ 67 milhões só nos cinemas dos EUA.

“Graças a Deus, ‘Quarto de Guerra’ também foi um sucesso no Brasil, com um público de mais de 600 mil pessoas. De DVD vendemos 40 mil unidades”, afirma Ricardo Carvalho, gerente de marketing artístico da distribuidora Canzion Films, uma multinacional fundada no México há 30 anos e que lançou a obra dos Kendrick no Brasil. “Nós buscamos filmes que tenham uma mensagem que possa abençoar as pessoas e as aproximar de Cristo.”

Os exibidores, porém, demoraram a acreditar no potencial financeiro do gênero e raramente aceitavam programar filmes cristãos nas salas. Para lançar “Quarto de Guerra”, a Canzion penou: um dono de cinema chegou a dizer que o longa nunca passaria de 60 mil espectadores. Depois, seu bom desempenho, 1.000% acima do prognóstico equivocado, acabou facilitando a vida da Canzion, quando a empresa apareceu com outro título cristão, “Para Sempre”, sobre um casal de noivos que enfrenta uma leucemia com amor e fé, lançado em dezembro.

É importante entender que, tanto nos roteiros dos filmes, como nesse mercado, sempre há uma dose grande de fé.

“O que deu certo foram as pré-estreias, a gente viajou por 12 capitais com o ‘Para Sempre’ antes de ele entrar em cartaz. E a gente convidou pastores para as sessões. Se eles gostam, recomendam o filme em suas igrejas”, explica Ricardo Carvalho.

Publicidade boca a boca

Essa estratégia segmentada de marketing tem sido regularmente utilizada, com sucesso. Boa parte das produções cristãs não aparece em reportagens de jornal nem ganha espaço publicitário em outdoors nas ruas. Os críticos de cinema ou ignoram ou avacalham os filmes. Mas seu público fica sabendo, seja pelo boca a boca dos fiéis, ou pelo sermão na igreja.

Foi assim com “Deus Não Está Morto” (2014), longa-metragem sobre um aluno cristão cuja crença é questionada por um professor de filosofia. O filme foi produzido pela Pure Flix Entertainment, um estúdio do Arizona, EUA, dedicado exclusivamente ao gênero. A Pure Flix é, hoje, uma gigante de mídia, com mais de 30 produções próprias e um sistema próprio de vídeo por demanda em que são oferecidos cerca de 5 mil títulos (nos moldes da Netflix).

A companhia leva tão a sério a crença de seus clientes que, há três meses, anunciou um novo serviço para os assinantes: os mais radicais podem bloquear o som quando palavras como “inferno” ou “maldição” forem utilizadas em algum filme.

O custo de produção de “Deus não está morto” foi de apenas US$ 2 milhões, enquanto que sua renda nos EUA foi de US$ 60,7 milhões. Já no Brasil, a obra foi lançada em agosto de 2014 pela Graça Filmes, distribuidora que é uma das líderes no mercado cristão e que foi fundada em 2010 pelo pastor, cantor e apresentador R. R. Soares. “Deus Não Está Morto” já estava disponível na Netflix, e ainda assim levou 300 mil pessoas aos cinemas brasileiros. Como comparação, o último vencedor do Oscar, “Moonlight”, em cartaz há mais de duas semanas, ainda não chegou a 200 mil espectadores.

“Não é fácil produzir um filme cristão. Às vezes uma única cena acaba fugindo do foco, e para esse público a mensagem é o mais importante”, explica Ygor Siqueira, ex-diretor executivo da Graça Filmes e hoje dono de sua própria empresa, a 360WayUp. Ele produziu o filme “Três Histórias, um Destino”, de 2012, que entrou em 50 salas e alcançou 284 mil espectadores. “Foi o primeiro filme evangélico a dar bilheteria no Brasil”, diz.

A 360WayUp atua como consultora, distribuidora, produtora, agência de marketing e assessoria de comunicação para filmes cristãos. Siqueira se tornou referência nesse mercado, justamente por conhecer bem seus espectadores alvo e o caminho para chegar a eles. Em 2016, até mesmo os grandes estúdios contrataram a 360WayUp para ajudar no lançamento brasileiro de filmes como “Ben-Hur” (Paramount) e “Ressurreição” (Sony).

Papa nas telas

O mais recente trabalho de Siqueira foi a divulgação de “Papa Francisco: Conquistando Corações”, ficção sobre a vida de Jorge Mario Bergoglio antes de se tornar papa. A produção chegou aos cinemas brasileiros na última quinta-feira (9), depois de pré-estreia especial na Arquidiocese do Rio, com a presença do cardeal Orani Tempesta. É o tipo de marketing que o gênero busca.

“Quanto mais igrejas e líderes religiosos se envolverem para fomentar o cinema, melhor”, diz Siqueira.

Não existem regras para dizer o que é ou não um filme cristão, e nem sempre a mensagem é óbvia para o público. O mais bem sucedido desses foi o controverso “A Paixão de Cristo” (2004), de Mel Gibson, que, apesar das cenas extremamente violentas, lotou os cinemas e lucrou US$ 612 milhões no mundo. Mas, nos últimos tempos, o mercado se aqueceu, e não será surpresa que em algum momento a bilheteria de “A Paixão de Cristo” seja superada.

Produções recentes, como “Milagres do Paraíso” (2016), “Deus Não Está Morto 2” (2016) e “O Céu é de Verdade” (2014), têm gerado interesse dos estúdios. No início de março, foi lançado nos EUA o filme “A Cabana”, drama cristão baseado no best-seller homônimo de William P. Young, com Sam Worthington, Octavia Spencer e Alice Braga no elenco. Mesmo estreando junto ao blockbuster “Logan”, “A Cabana” foi exibido em 2.888 salas e arrecadou US$ 16 milhões no primeiro fim de semana. No Brasil, chega em abril.

Esse aumento na oferta de filmes cristãos também levou à criação, nos EUA, de um site chamado Christian Film Database (CFDb), uma versão religiosa do famoso banco de dados Internet Movie Database (IMDb). Nele há mais de duas mil produções catalogadas, inclusive “Silêncio”, sobre a perseguição de padres missionários no Japão, curiosamente do mesmo Martin Scorsese que foi atacado no passado por “A Última Tentação de Cristo”.

No Brasil

O cinema brasileiro também vem, aos poucos, acompanhando o movimento do mercado. Lançado no ano passado como adaptação da novela homônima da TV Record, “Os Dez Mandamentos” se tornou a maior bilheteria da história do país, com 11,3 milhões de ingressos vendidos. Diretores conhecidos, como Vicente Amorim (“Irmã Dulce”, 2014) e Tizuka Yamasaki (“Aparecida - O milagre”, 2010) também se embrenharam em contar histórias com mensagens cristãs.

Mas fica em Joinville, Santa Catarina, uma produtora exclusiva para o gênero. Criada a partir de um grupo de teatro de igreja, a Red Films começou a operar em 2005 com o lançamento em DVD de “As Estrelas me Mostram Você”, comédia romântica cristã focada em jovens no último ano de colégio. O negócio cresceu, outras duas produções foram realizadas diretamente para vídeo, e eles se preparam para lançar, ainda neste ano, seu primeiro filme em cinema: “Quando o Sol se Pôr” é protagonizado pela cantora e apresentadora Priscilla Alcantara e conta a história de uma banda cristã que se apresenta num festival universitário.

“Antes, havia um preconceito por sermos cristãos. Hoje, não. As pessoas tratam como um filme como qualquer outro”, afirma Fábio Faria, diretor da Red Films. “Um bom filme cristão não se presta simplesmente a evangelizar os outros. As mensagens são passadas pelas histórias que a gente conta. É daí que a coisa dá certo.”

Para o mercado cinematográfico, que durante tanto tempo lamentou a venda de cinemas de ruas para igrejas, é uma reviravolta digna dos mais incríveis milagres bíblicos.

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