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 | Ricardo Humberto/Especial para a Gazeta do Povo
| Foto: Ricardo Humberto/Especial para a Gazeta do Povo

David Foster Wallace costumava dizer que a geração de escritores que veio antes da dele viveu um contexto cultural mais ou menos comparável ao de um grupo de irmãos adolescentes que dá uma mega festa num fim de semana em que os pais viajaram. Nada de regras. A gente senta sem cueca no teclado do piano da vovó. Bebe de funil o uísque 12 anos do papai. Urra as músicas que não pode ouvir no dia-a-dia etc.

Bundalelê. Festa no apê.

Já ele (pós-pós-moderno?) se via na situação da primeira pessoa que acorda com o raiar do dia, olha em volta, vê vômito no tapete, uma cortina rasgada, gente dormindo fedorenta, uma pessoa desconhecida sem roupas na banheira.

Primeira reação: “ai, como eu queria que os meus pais voltassem e dessem jeito nisso”.

Segunda reação: “não, o problema é meu mesmo”.

Resumo: era ele que ia ter que pôr a casa em ordem.

Era ele quem ia ter que decidir se mandava o Roberley, que comeu um pedaço do cacto da mamãe, não dar mais as caras por ali.

Dá pra entender?

Ele queria ordem. Mas não queria perder a liberdade conquistada. Era tentar encontrar algum meio-termo.

Ele estava falando de literatura. Claro.

Mas não só de literatura. Claro.

Você já viu algum pedaço da série “Downton Abbey”?

Novelão, né? Folhetim total.

Mas a reconstrução de época (anos 10-20), em termos de cenografia, figurinos etc., é estonteante. E, mais ainda, é muito bacana ir descobrindo que a grande história por trás das seis temporadas não é a dos amores de Lady Mary, ou das agruras de Lady Edith ou das dúvidas do Conde Grantham. O que se narra ali, de maneira soberba, é o fim de todo um mundo. O fim dos últimos resquícios da vida aristocrática do século 19, destroçada pela Primeira Guerra Mundial e toda a série de “efeitos colaterais” do conflito.

Os criados que se educam.

A cozinheira que usa suas economias e vira proprietária.

A moral que se altera.

As mulheres que começam a vir à boca de cena.

As hierarquias e ritos que se perdem…

Mas aí eu fico meio encafifado. Porque aquele pessoal, naquele tempo, vivia segundo códigos e rituais pétreos, claríssimos e conhecidos. Como se dirigir a fulano. Como tratar beltrano. Etc. Como dizer, quando dizer, o que dizer, a quem dizer. Só que isso tinha um curiosíssimo efeito colateral: você podia, paradoxalmente, dizer quase qualquer coisa.

O solo da convenção era tão firme que tudo podia se erguer sobre ele.

A gente, hoje, paradoxalmente (O.k.? A repetição é propositada. O.k., a repetição é propositada.), vive quase sem ditames sociais e conversacionais, e pode sentir mais dificuldade pra dizer certas coisas. Pra se atingir, pra se livrar de melindres, delicadezas e suscetibilidades que ficam permanentemente ocultas, quase negadas. Mas gritam o tempo todo.

Meu irmão, que é mais erudito, disse que o sociólogo Richard Sennett já escreveu bem sobre isso, em “O declínio do homem público”, que tem o belíssimo subtítulo de “as tiranias da intimidade”.

Eu só sei que, como o Wallace achava aquilo muito o-nosso-tempo, eu ao mesmo tempo acho tudo isso muito o-nosso-país.

As armadilhas da nossa “cordialidade”.

Será que um pouco de regras não seria melhor?

Será que isso é MUITO curitibanismo ou velhismo meu?

(Vale lembrar que o Sérgio Buarque de Holanda não pensava em “gentileza”: o “homem cordial” brasileiro era um homem “cardíaco”, passional num certo sentido, menos cartesiano, menos convencional: mas a minha dúvida, pra acabar aqui em parênteses, é se a gente não perde um pouco de chance de ser mais “cordial” nos dois sentidos ao ganhar essa nossa, imensa, intimidade. Ao se dobrar também a essa “tirania”. Porque será que a gente quer continuar amigo do Roberley? Será que a gente quer convidar a Lady Grantham pra tomar chá?)

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