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 | Ricardo Humberto/Especial para a Gazeta do Povo
| Foto: Ricardo Humberto/Especial para a Gazeta do Povo

O ano era 1988. O filme, “Atração Mortal”, uma versão meio pervertida da comédia de High School. Se não me falha a memória ele já se abre, meio ironicamente, com uma versão de Que será, será. Curti a música na hora.

A minha mãe, acho, me falou que a versão de verdade era de uma tal de Doris Day.

Mais ou menos nessa época eu comecei com as minhas aventuras madrugueiras vendo filmes no Corujão. (Acho que já mencionei isso aqui.) Vi mais de uma comedinha romântica com ela, que não raro cantava.

1994, temporada de praia. Acabei lendo, meio contrariado, “Saudades do Século XX”, de Ruy Castro. Tinha, se não me falha a que costuma falhar, um capítulo sobre dona Doris, onde pela primeira vez eu fiquei sabendo que ela podia ser considerada uma cantora séria.

Essa semana, num surto de felicidade de streaming, fiquei ouvindo discos dela dos anos 50, 60… E, crianças, trata-se de uma belíssima cantora!

Uma voz bonita, diferente, quase rachada na juventude e mais estável lá pelos quarenta anos. Um vibrato veloz igual ao da Sarah Vaughan, mas em outro volume. Correta, nada genial, ok. Mas o disco que ela gravou com o trio de André Previn, por exemplo (Duet) é uma delícia. Uma festa mesmo.

E ela está viva, sô! Passada dos noventa, feliz e pimpona. Fiquei feliz quando descobri.

Só que essa coisa toda me deixou pensando…

Afinal, a gente conhece mais do que bem hoje em dia esse figurino da cantora que se torna atriz de comédias românticas, ou da atriz que vira cantora pop. Doris Day, no seu tempo, já era definitivamente pop, tanto no sentido de “popular” quanto no sentido de ter se tornado um produto marketável, calculável e vendível.

Em dado momento da sua carreira ela era simplesmente a atriz mais rentável de Hollywood. E, repito, ela de fato nem era atriz!

Outra coisa meio constrangedoramente século-vinte-e-um na história da dona Doris (desculpa lá, oh nonagenária diva…) era o fato de ela ser, algo discretamente, conhecida como a dona do mais belo derrière do cinema. Isso mesmo. Tempos em que as pessoas pra falar de bunda usavam um eufemismo francês!

E certos cartazes de filmes dela, por exemplo, cuidadosamente realçavam ângulos e posturas pra deixar isso mais do que claro.

Agora, pera lá também.

A mulher que gravou Close your eyes e fez par romântico com Rock Hudson (ah, ingenuidade dos anos 50!), a mulher que tinha a tal bundinha jeitosa, Doris Mary Ann von Kappelhoff (seu nome real), era mais ou menos a Jennifer Lopez de sessenta anos atrás?

A Madonna?

A Nicki Minaj?!

Eu estou ficando velho. E preciso conscientemente lutar pra não ficar resmungando que ai meu Deus como tudo piorou nesses últimos tempos. Eu até brinco com os alunos, dizendo que todas as gerações, desde que o mundo é mundo, acreditavam que a geração seguinte estava acabando com o idioma, a cultura e tudo mais. Todas. Sendo que a única diferença, eu sublinho pra eles, é que agora isso é verdade.

Mas é de brincadeira, né?

A gente sabe que isso é ranzinzice.

Mas…

Ouvindo Control Yourself e lembrando de Confidências à meia-noite, eu até posso me conter e não sair deblaterando quanto à perda da qualidade de tudo que resta sob o sol. Nada ali é obra-prímico, afinal. E me contenho mesmo.

Mas a bunda é o símbolo. As nalgas de Nicki Minaj sacudindo pelo mundo ainda me parecem prova incontestável de que pelo menos elegância a gente perdeu, sim…

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