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 | Ilustração: Robson Vilalba
| Foto: Ilustração: Robson Vilalba

Graças a um punhado de boas notícias, a alguns eventos culturais, a pessoas que não vieram a esse mundo à toa e até a confusões em praça pública, a palavrinha andava meio sumida nos últimos tempos. Escafedeu-se mesmo. Mas ela voltou com a força de rojões explodindo na última quarta-feira.

Metade do mundo vibrou, metade tentou ignorar. Mas o Corinthians foi, sim, campeão da Copa Libertadores da América e, se deixou para trás um tabu, criou um arsenal de novas piadas. Às 23h13, saiu o primeiro gol de Émerson Sheik. Vizinhos gritaram mais alto que Cléber Machado. Instantaneamente, fogos de artifício explodiam no céu de um estranho veranico de julho, fazendo de Curitiba, naquele momento, uma província futebolística de São Paulo.

Vinte minutos depois, lá estava Émerson comemorando outro tento. O segundo que, como se diz no futebol, fechou o caixão. Para Curitiba, ele abriu o sarcófago. E dele ressurgiu a palavra maldita, que talvez precise de uma simples conta para ser bem compreendida nos dias de hoje.

Metade da autofagia – eis a palavra – do curitibano está em ignorar o que é produzido aqui com qualidade. Ignora-se não porque exista uma maldade intrínseca a quem vive entre pinheiros, vinas (nem o Word reconhece a palavra vina, acaba de marcá-la em vermelho aqui) e ônibus biarticulados. Ignora-se porque não há interesse em algo que está na esquina, fácil. Ignora-se também, ainda que raramente, porque há inveja, sentimento que surge normalmente quando algo extraordinário bate de frente com a normalidade das coisas. Falo de música, também, por mais que o interesse pela produção local, hoje, seja maior do que o de virar as costas. Mas voltemos ao futebol, mais precisamente ao Coritiba na semifinal da Copa do Brasil.

No segundo jogo contra o São Paulo, há três semanas, ouviu-se um grito tímido aqui, e notou-se uma explosão que coloriu o céu ali. Comparando com o festejo dos corintianos, ignoramos o que fazíamos de melhor naquele momento, com aquele 2 a 0 indiscutível. Talvez não por maldade, como disse, e sim porque somos assim: compramos menos fogos, gritamos pouco e não gostamos de tanto barulho. E ainda reclamamos se o vizinho extrapolar na comemoração. Por essas e por outras, a Avenida Batel ficou mais cheia de corintianos na última quarta-feira do que de coxas-brancas no último dia 20 de junho. (Escrevo esse texto antes da primeira partida da final contra o Palmeiras. Mas aposto uma paçoca de rolha que a situação não foi muito diferente, e nem será se o Coritiba for campeão.) Esses casos, enfim, em que ignoramos nossos próprios brilhos, nem que seja economizando nos fogos e no gogó, perfazem os 50% da autofagia.

A outra metade, a versão legal da coisa toda, está na valorização de nossas idiossincrasias, aquilo que nos faz estranhamente diferentes e universalmente únicos. É como, por exemplo, escrever um conto em que há um personagem que sai de casa de bermuda e cachecol – não é louco, é curitibano prevenido. Ou então dizer simplesmente que, em um só dia, Curitiba é capaz de viver as quatro estações do ano. Esses outros 50%, portanto, são resgates instantâneos de nossa memória, que, a longo prazo, espera-se, irão nos revelar, e não nos consumir.

Prova maior e bem atual é Dalton Trevisan, autor – vamos de neologismo – "metafágico", que usou Curitiba para criar o seu mundo e ganhou todos os louros com isso. A autofagia, como a conhecemos hoje, é uma moeda. Ora cai de um lado, ora de outro. Nesse sentido, não sair às ruas para comemorar um título pode ser mais curitibanamente verdadeiro do que criar um buzinaço insuportável.

Atentemos a isso, valorizemos as nossas particularidades para postergar a nossa existência. E também a vina, que ainda continua sublinhada em vermelho por aqui.

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