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 | Ilustração: Osvalter Urbinati
| Foto: Ilustração: Osvalter Urbinati

É questão de minutos, e ela não aguenta mais esperar. Observando os gestos obtusos e a inquietação da moça logo à frente, nota-se que aquele show é algo importante mesmo, esperado. Desejado até. Fosse eu mais detetivesco, provaria que suas mãos suavam, tamanha a ansiedade por ver, enfim, sua banda favorita subir no palco.

Eis que o show começa e ela, tremendo como tremem as pessoas apaixonadas, ergue sua câmera fotográfica que também filma em HD. Dá um grito seco e não vê seu ídolo dar um "oi" simpático. Tampouco o baterista rodopiar sua baqueta. Perde a afinação derradeira do guitarrista e também a posição blasé do baixista, que está de pé e pronto para começar tudo antes de todo mundo. Ou melhor, ela vê. Vê tudo pela lente pequenininha daquela câmera que, com seu filtro digital, lhe dá um simulacro de uma realidade que poderia ter sido inesquecível.

Escolher filmar um show ao invés de vivê-lo é assinar um decreto que diz: sou incapaz de assimilar experiências. Eu tiro fotos em shows, confesso. Uma, duas, que saem amadoras e tremidas. O registro é mais pessoal do que qualquer outra coisa e escolho clicar durante as músicas de que menos gosto para, penso eu, perder menos. O que parece ser problemático, mesmo em uma era de inquietação virtual, pois parte de que vivemos primeiro para a internet do que para qualquer outra coisa, é trocar por um mero registro sua capacidade de entrega, de devoção e até sua própria história – quando a banda em questão faz parte do seu repertório há muito tempo. Mas há outros motivos além deste, o principal deles.

Primeiro, tenha inveja: há centenas de pessoas fazendo o mesmo que você e certamente com uma câmera melhor que a sua. Segundo, use a internet a seu favor: o YouTube está aí e, se quiser rever determinado show, é só dar um clique. Terceiro, o ato de erguer câmeras sobre as cabeças atrapalha quem está atrás de você e tem mais interesse em ver a banda ao vivo do que por uma lente. Por último, ao filmar, você não pode pular, espernear, nem gritar porque onde já se viu a gravação sair tremida ou com ruídos indesejáveis, ainda que espontâneos.

O pior mesmo é o que vem depois. Se você não vai a um show e pergunta a alguém que estava lá como foi, a resposta pode ser a própria câmera. "Vê aqui, ó." Se a tela for pequenininha, tem problema, não. Com um cabo ou outro, liga-se na tevê e pronto. Está lá o show.

Mas a pergunta "como foi?" exige descrições detalhadas e empolgadas, superlativos exagerados, esquecimentos providenciais e confusões aceitáveis – "foi naquela música ou em outra?" – porque, meu Deus, é muita emoção. Porque é exatamente isso que faz um show ser único, lembrado, relembrado e comentado. Não é mostrando um vídeo a alguém que você irá comprovar isso, e sim lembrando que sentiu uma nota de baixo vibrar em seu corpo.

Alguns podem dizer que o registro é para a posteridade, para mostrar aos filhos ou para virar história caso o show seja mesmo antológico. Pois reafirmo que nada melhor do que uma descrição invisível para dar forma a uma experiência. Hoje, consumimos imagens e não crenças, não histórias. Se somos mais liberais, instantâneos e "compartilhados", somos também mais falsos, a manipular cada experiência, inclusive as mais tocantes, e, ao capturá-las, deixá-las todas idênticas. O perigo é, como disse Barthes, construirmos com isso um mundo sem diferenças, nauseabundo. Pois então, vá ao show – com câmera – e não me convide.

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