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| Foto: Palavras de Cinema/Divulgação

Eduardo Coutinho saiu de cena de supetão. Sua morte antinatural fez brotar por aí boas reflexões sobre a cinematografia que deixou. "Só damos valor quando perdemos", ouvimos sempre – e não nos lembramos nunca. Há uma semana, a Cinemateca de Curitiba exibiu Edifício Master (2002) e Cabra Marcado para Morrer (1964-1984) – foi engraçado reparar nas mesmas figuras em ambas as sessões. Na plateia parcialmente cheia, havia uma cordialidade invisível no ar. Um sentimento em comum, que misturava tristeza, respeito e um quê de devoção.

Na última quarta-feira, uma sessão especial de cinema na Faculdade de Artes do Paraná infringiu algumas regras por um bem maior ao exibir o raro Um Dia na Vida (2010), filme que ficou na gaveta de Coutinho – ao lados dos maços de cigarro – devido a imbróglios sobre direitos autorais. O calor na sala da Fap só fez aumentar a sensação de se estar assistindo, quem diria, a um filme de terror.

Em outubro de 2009, Coutinho gravou por 19 horas seguidas programas e intervalos comerciais de todas as tevês abertas do Brasil. A edição final, de uma hora e 35 minutos, é uma colagem muito brasileira, que mistura violência, apelo ao corpo, ao consumo e à religiosidade. É chocante, apesar de não oferecer nada mais do que estamos acostumados (domesticados) a ver. É assim, quando um recorte do ordinário é descontextualizado e vira algo maior, que a genialidade do artista brilha.

Um Dia na Vida nos joga na cara o peso de uma realidade – sempre ela, para Coutinho – ao mesmo tempo mutilada, inatingível e manipulada. Se a tevê é produto de massa para telespectadores solitários – ligar o aparelho em casa quando se está sozinho serve como companhia –, a proposta de Coutinho subverte essa lógica ao utilizar o cinema (criação solitária) para discutir as massas.

Um relógio do lado direito da tela marca 6h50: o dia na vida, o meu, o seu, começa com o Telecurso 2000. Depois, Ana Maria Braga aparece tocando Guitar Hero como se fosse um B. B. King engessado. Risos. Uma zapeada e alguém diz que o sangue AB, raro, era o de Jesus Cristo. Um telejornal pula de um assassinato para um desfile de moda em Milão, com a naturalidade de quem diz o que comeu no almoço. Vende-se uma cinta mágica que diminui até 14 centímetros da cintura de mulheres com "pneuzinhos". "Na hora!". 18h30: num programa sensacionalista, um homem baleado, espatifado no asfalto de São Paulo, recebe massagem cardiorrespiratória. Um bebê nasce na novela brasileira, um coronel encrenca com um casal na novela mexicana mal dublada. Vendem-se anéis de ouro por R$ 2.250. À noite, Massacration toca na MTV. Vende-se um vidro com cápsulas de cálcio. Um pastor evangélico diz que Pedro é mentiroso. Outros dois oram em frente a um copo d’água e são responsáveis, graças a Deus, pelo silêncio definitivo.

Todos riram em algum momento do filme. Mas é um riso de horror, também fora de ordem. Um riso por impulso, devido a um Brasil midiaticamente bestial.

A metáfora precisa e simbólica de Coutinho é a transformação da "mulher mais feia do mundo". Depois de inúmeras e agressivas intervenções cirúrgicas, a senhora é convidada a ir ao programa da Marcia Goldsmith. Ela se olha no espelho, a plateia delira: está um monstro. Coutinho nos fez olhar no espelho. E o resultado é um filme de terror ininterrupto e onipresente.

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