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A certa altura da música "Let it Be", que Paul McCartney dedilhou em um piano preto e brilhante para 64 mil pessoas no show que fez em São Paulo no dia 22 de novembro, girei 360º. Lentamente, observei com a atenção de um anestesista o que acontecia no estádio do Morumbi. Era algo "memorável", diria alguém, sem precisar se esforçar muito.

Sim, a música é gasta, rodada, batida. Tudo isso. Mas a ideia de que, ao ouvi-la ao vivo não sentiria uma sensação brega ou clichê já estava há muito na minha cabeça. Então, desarmado, dei atenção aos detalhes que coroaram aquele momento.

O sujeito solitário ao meu lado esquerdo – um cara com seus possíveis 30 e poucos anos, alto e troncudo –, se perguntava "o que é isso, meu Deus, o que é isso?", como se a resposta para aquela catarse unânime e concentrada estivesse nos céus. Céus, aliás, que derramaram ininterruptas cinco horas de chuva em fãs que não arredariam pé mesmo se as gotas gordas se transformassem em canivetes. O rapaz, então, levava a mãos ao rosto, limpando o que já era um misto de chuva e choro, presente em muitas caras embasbacadas por ali.

Três senhores com os quais eu tinha conversado anteriormente agora estavam impávidos. Um deles mantinha o punho cerrado, como se prendesse as notas que ouvia e não as quisesse soltá-las nunca mais. Antes do show, sentados como índios em uma rodinha, bebiam cerveja da mesma maneira que faziam nos bares do interior de São Paulo há uns 20 anos atrás. Conversavam sobre os discos preferidos. Falavam de John, de George. Sobre os vinis que estampavam na parede de suas casas. E confessaram: inventaram uma boa desculpa para se ausentar de suas mesas bem arrumadas de engenheiros.

O sujeito exatamente atrás de mim poderia ser descrito como um empolgado-desafinado. Cantou a frase "And when the night is cloudy" com um inglês até que correto, mas tão, tão fora do tom que chegou a abrir uma rodinha de reprovação em um espaço já impraticável. E mais. O jovem – ele vestia uma camiseta azul anil totalmente encharcada e usava óculos de um respeitável grau – fazia caras, bocas e gritava para seu ídolo. "Paaaaaaul. Paaaaaaaaaaul. Esse cara é demais", falava, buscando ecos em uma plateia controladamente ensandecida que não queria outra coisa a não ser ajudar Paul McCartney a cantar "let it be, let it be".

Com as luzes do estádio apagadas, as arquibancadas pareciam fazer parte de uma novena, já que celulares – que agora tomaram o lugar do isqueiro em grandes shows – reluziam no breu. A única luz mais forte vinha do palco.

Depois de completar o giro e voltar a prestar atenção no músico de 68 anos que se divertia à minha frente, percebi que o show foi, sim, um encontro de gerações. Em uma época em que as individualidades artísticas perderam espaço para as fórmulas enlatadas de sucesso, senti que realmente estava fazendo parte de algo maior. Que todas aquelas vozes, toda a chuva que caiu, todas aquelas pessoas de cabelos e olhos molhados estavam em comunhão com algo que mistura história, devoção e emoção e que, talvez, nunca mais se repita.

E há que se lembrar. Não eram os Beatles. Tampouco o baixista dos Beatles que estava lá. Era 1/4 de um sonho, que teve suas três horas da mais pura e inesquecível realidade.

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