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Ela passa a tarde lendo revistas espíritas, à noite me informa:

– Já é certo que os bichos, principalmente os cachorros, também vão para o Céu.

– É, mãe? Que bom!

Ela fala olhando longe:

–  Pois é, e quando eu for pra lá, vou procurar o Chuvisco... Aí vou dar banho nele, vou limpar aquela ramelinha que ficava nos olhos dele, vou chamar um anjo pra me ajudar a dar também uma poda nele, você sabe, pra podar o danadinho alguém tem de ajudar segurando.

Já vai mexendo as mãos como fazendo o que diz:

– Vou podar pouco no corpo, viu, Chuvisco, senão você fica muito magrinho. E vamos cortar esses pelos caindo no olho, assim, pronto. Olha que bonitinho que ficou o Chuvisco!

Sorri para as mãos coalhadas de sardas de velhice, Chuvisco está ali. Falo só quando ela me olha:

– Mãe, se os cachorros vão pro Céu eles também têm alma, né?

– Claro! Pois se não tivessem alma, como é que iam ser tão companheiros da gente! Cachorro não é bicho, é quase gente!

– Não precisa ficar brava...

– Claro que cava, cachorro cava pra esconder osso! Melhor que gente que cava pra esconder dinheiro, arma, sem falar nesse buracão que abriram lá no metrô de São Paulo! Claro que cachorro cava, que que tem de errado cachorro cavar?

Deixo assim, mas ela não se conforma:

– Por que te incomoda cachorro cavar?

Tento explicar que não me incomoda:

– Até aproveito alguns dos buracos, que os cachorros cavam pela chácara, para plantar mamão!

–  Que que você faz com a mão?

Melhor voltar ao começo da conversa:

–  Por que a senhora tem certeza que vai pro Céu? – pergunto soletrando bem cada sílaba, bem perto do seu ouvido, e então ela fica novamente olhando longe, balançando a cabeça até concluir:

–  É, não sei se vou chegar lá no Céu. Mas você não acha que mereço? Posso ter cometido muito pecado, mas o que já sofri nesta velhice não vale como purgatório?

–  Deve valer, mãe. Mas a senhora não devia contar como certo que vai pro Céu, porque isso pode desagradar Deus, sabe, parece arrogância.

Ela fecha a cara, até que estrila:

–  Mas Deus também não pode perdoar?! Eu já perdoei tanta coisa de tanta gente!

– Só não exija que Deus perdoe, né, mãe...

De novo ela fecha a cara, fica olhando longe até sorrir:

–  Quando chegar no Céu, vou falar: oi, São Pedro, cheguei, se tem muita coisa pra arrumar aí, pode contar comigo, e pronto, decerto vão me perdoar tudo, porque quem é que não ajuda quem chega querendo ajudar?

– Mas, mãe, isso não será uma espécie de suborno?

–  Quem é corno, São Pedro?! Por que você fala uma besteira dessas? Deus castiga!

Depois que explico, ela se acalma, respira fundo aliviada, aproveito para apertar mais o parafuso:

–  Se o Céu é perfeito, mãe, o que é que a senhora poderia ajudar a arrumar?

Os olhos piscam enquanto ela pensa, até me encarar brava:

–  Você pensa demais, não é bom pensar demais! Quem pensa demais acaba com doença da cabeça! Eu quero ajudar, ué, a vida inteira ajudei tanta gente, por que não vou ajudar no Céu? Se não puder ajudar ninguém lá, se não poder fazer nada, então não quero Céu nenhum!

Digo que isso pode ser uma blasfêmia, ela se irrita:

– Não quero saber se é fêmea, se é macho, eu quero é continuar fazendo coisas, ajudando gente, já chega tudo que não posso fazer por causa da tal velhice, que é uma chatice, isto sim!

Toma fôlego, desabafa:

– Eu quero é encontrar o Chuvisco, nem que seja no inferno!

– Mas, mãe, aí ele também vai estar sofrendo!

–  Ah, é! – ela dá um tapa na boca, os olhos umedecem e fala baixinho: –  Desculpa, Chuvisco, você vai pro Céu sim, nem que eu tenha de meter o pé na porta de São Pedro e...

Fica sorrindo, olhando longe, decerto já vendo Chuvisco a correr pelo Céu entre nuvens e anjos.

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