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Sonhei que numa floresta andava por um trilho quase fechando de tantos ga­­lhos pendentes e cipós, sem saber por que estava ali nem para onde ia o trilho que, mesmo assim, eu continuava a trilhar, ouvindo longe tambores que me faziam bater forte o coração.

Aí o trilho bifurcou: à direita, continuou o mesmo trilho quase fechando de tanto mato, e, à esquerda, um trilho limpo e batido.

– Mas como pode se tornar um trilho batido – pensei – se até aqui não era assim?

Então tocou o celular.

– Mas como, se não tenho celular?

O celular continuou a tocar, procurei nos bolsos, mas não tinha bolsos, estava pelado! E o celular repetia as primeiras notas daquela sinfonia de Be­­­thoven que parecem grandes batidas na imensa porta do destino, tan-tan-tan-taaamm!

E o coração disparava, os tambores soando mais perto. Agachei, na postura ancestral de quebrar coco ou fazer cocô, e esperei o coração acalmar, pensando: bem, o trilho batido só pode ser uma ilusão, o certo é tomar o trilho matoso.

Fui em frente afastando galhos e cipós, e um passarinho cantou, o que não é nada anormal numa floresta, anormal é que eu conseguia traduzir o canto dele:

– Seu imbecil! Como sempre, você reage movido pela mente, que sempre te engana... Escolheu o trilho mais difícil, resistindo ao fácil, exatamente como faz não usando celular, que podia simplificar tanto tua vida...

– Não – argumentei como sempre – Não quero um bebê eletrônico que precisarei alimentar com eletricidade e que, decerto, esquecerei por aí.

– E as pessoas – cantou o passarinho – esquecerão de você, quando ligarem para seu telefone fixo e você não atender...

– Mas estou quase sempre em casa – argumentei – E, quando não estou, tem gente que atende, senão tem a secretária eletrônica.

– Ah-há! – ele passarosamente riu – A secretária pode ser eletrônica...

– Isto mesmo – gritei – Celular, não!!! – e um bando de araras levantou voo, fiquei olhando extasiado, pensava que nem existiam mais bandos de araras.

O passarinho então cantou baixinho:

– Im-be-cil... Bandos de araras só existem em sonhos, estão praticamente extintas, como as pessoas que não usam celular.

Não preciso de celular, falei baixinho, não tenho essa ansiedade de ficar ligando para os outros, não preciso carregar essa muletinha emocional.

Tá bom, ele cantou já longe, tá bom, então fique aí perdido. E o celular parou de tocar, acordei ouvindo o rádio, que esqueci ligado, tocava uma música com batuque de tambores.

Vi a luzinha da secretária piscando, toquei a gravação, era um convite para visitar a fazenda de um amigo que tem lá um bosque, onde ainda vivem macacos e... araras!

Mas, pensei, como é que as araras entraram no sonho se eu ainda nem sabia do convite para visitar a fazenda? Já teria sabido, pensei num calafrio, se tivesse celular.

Agora, fico pensando: compro celular? Mas daí, seguindo a trilha, vou acabar tendo iPod, mp3, câmera digital, ó deuses da floresta, iluminai-me!

Ou arranco da parede o telefone fixo e vou viver numa ilha? Mas então como receberei os direitos autorais? Tem de ser uma ilha com agência bancária. E cartão eletrônico. E... já acordei ou ainda estou vivendo um e-pesadelo?!

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