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Somos privilegiados: podemos ter fogueira em casa, embora o certo não seja dizer que temos, pois ninguém tem uma fogueira, já que ela se queima e ao fim só restam cinzas. Só? Não, restam também as boas lembranças e a saúde de olhar brasas e amansar o coração, tostar espigas e assar pinhões e batatas, além de esfregar as mãos diante do fogo, olhando estrelas entre gente querida com os cabelos prateados de luar.

Estou sendo romântico? Que seja. Queria o que, que ficasse amargo e modernamente cínico depois de passar horas a ver o trabalho do fogo? Lembrei do Nono Bepe, que torrava café na torradeira manual no fogão de lenha, e falava girando a manivela e pitando o palheiro:

– Vocês nasceram já no tempo do fogão a gás, por isso não valorizam o fogo. Quem cozinhou com lenha, valoriza. Mais ainda quem, como eu quando era tropeiro, tinha de catar lenha antes que escurecesse. A gente chegava no pouso, o ajudante do cozinheiro ia pescar ou caçar, ou comprar lingüiça ou mandioca de algum sítio ali por perto, enquanto o cozinheiro ia fazendo arroz-feijão com a lenha que outras tropas tinham deixado no rancho do pouso. Por isso algum peão sempre ia catar lenha, pra deixar ali também. Assim, mesmo se uma tropa chegasse no pouso com chuva, encontrava lenha seca no rancho. E depois da janta a gente ficava em volta do fogo proseando e contando causos...

O Nono como sempre tinha razão, o prazer depois do dever fica mais gostoso. É o que temos feito aqui na chácara, em redor da fogueira no terraço. (Sim, no terraço. Levamos para lá uma tampa de poço, uma roda de concreto que colocamos sobre tijolos, para o calor não estragar o piso, e ali fizemos a fogueira com madeira de galhos podados, que fui guardando durante o ano.)

Antes de acender a fogueira, fazemos os deveres: chamar amigos, preparar a sopa para o caldeirão que ficará quente ao lado da fogueira, cortar os cubos de queijo para assar espetando em varetas de taquara. Quando as pessoas chegam, tudo está pronto para a ancestral admiração do fogo e das brasas. E, quando as bocas se fartam de encher a barriga, começam a falar como se obedecendo a um deus anterior às religiões, ainda do tempo em que o bicho homem começava a ser gente, trocando idéias e emoções em redor do primeiro dos altares, a fogueira.

Os olhares brilham.

Os corações se aquecem.

As mãos se juntam.

Os pulmões se enchem de um ar milenar, e os ouvidos se abrem para os mínimos ruídos, a lenha a chiar, o braseiro despencando, o pinhão estalando.

A gente se defuma de sensibilidade e, de repente, as estrelas parece que piscam para nós e palpitam como pulsamos!

O cachorro que late longe, o grilo que crica ali, o sapo que coalá lá, todos se tornam irmãos.

Os índios confabulavam e resolviam suas pendências em redor do fogo. Será que os inimigos continuariam tão irredutíveis em seus pontos de vista se discutissem olhando o fogo?

Olhando o fogo, vejo famílias palestinas e judias em redor de fogueiras, as moças palestinas trocando olhares com os moços judeus, e a paixão, que é luminosamente cega, promovendo os casamentos para a ponte da paz.

Vejo pais e filhos conversando com a televisão finalmente desligada, abrindo o coração e destravando as línguas como as línguas do fogo se soltam da lenha.

Vejo casais de amor enferrujado a esquentar até incandecer diante do fogo, o desejo reacendendo, para enfim se cobrir de carinho como a cinza morna cobre as brasas.

Vejo crianças a cutucar as brasas, a brincar com fogo, até se queimarem, aprendendo com o fogo (já que tantos pais não ensinam mais) que há limites para tudo nesta vida.

Vejo jovens esquecendo dos celulares para ouvir o crepitar da lenha, e deixando de lado as câmeras digitais para ver, olhando o fogo, tudo que a imaginação e os sonhos deixam ver.

Me vejo no dia seguinte recolhendo as cinzas para o jardim e o pomar, para ter flores mais bonitas e frutas mais gostosas.

Sei também que fiquei melhor, mais antigo e verdadeiro, entre tantas falsas modernidades. Obrigado, Deus do Fogo! Amém, Mãe Fogueira!

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