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Niver | Tiomkim
Niver| Foto: Tiomkim

Vamos começar pelas panturrilhas – ou barriga das pernas – do Diego Hipólito. São finas. Olhando só elas, ninguém dirá que são de um atleta. Se Diego fosse prejulgado pela aparência, seria eliminado já nisso; mas essas pernas foram suficientes para ele dar seus saltos e ganhar suas medalhas. O que mais gosto nos jogos, sejam pan-americanos ou olímpicos, como nos esportes em geral, é essa possibilidade do dedicado tornar-se poderoso, o deficiente superar-se, além da busca incessante de recordes, que simbolizam a busca humana de melhoria.

O que não gosto nos Jogos Olímpicos são os hinos, estupidamente nacionalistas e guerreiros. Muito melhor que sejam só tocados instrumentalmente, não mais cantados, e até deviam ter as letras refeitas, para se adequarem a um mundo de paz e fraternidade. Na maioria, a letra parece ser feita para agradar Napoleão e homenagear Hitler. Nosso próprio hino convoca os brasileiros a não temer a morte em adoração à pátria ("não teme quem te adora a própria morte"), fazendo coro a tantos hinos que pregam o martírio e a provação do povo, enaltecendo o patriotismo, esse pai de tantas guerras, cujos recursos saem do ventre da mãe, a cidadania, que depois também têm de consertar os estragos.

Melhor voltar ao que mais gosto nos jogos. Além das pernas finas, alguém me diz que Diego Hipólito tem sotaque gay, o que torna suas vitórias importantes também para evidenciar a força da maior riqueza humana, a diversidade. Fosse no nazismo, não teria nem chegado a treinar (ou teria sido acolhido pela SS, a tropa de elite do regime nazista, que perseguia os homossexuais mas hipocritamente os tolerava desde que se tornassem dedicados policiais...).

Os preconceitos, aliás, moram na gente como braseiro que é só soprar para começar a queimar. Por exemplo, quando vi o porte varonil da nadadora brasileira medalhada, pensei ah, deve ser sapatona. Aí aparece ela falando que se emocionou de ver o marido chorando ao lado da piscina enquanto ela recebia a medalha...

Imagem bonita também foi a de Daiane dos Santos, afastada dos jogos por contusão, passando pó nas barras para a apresentação das colegas. A negrinha conhece o seu lugar: é líder, destinada a continuar como dirigente ou treinadora depois de encerrar a carreira de atleta. Como diria um locutor antigo, uma pequena de grande futuro.

Imagem tocante a de Jade Barbosa, não apenas no choro, mas na concentração antes das apresentações: uma face tensa, sofrida, mostrando que precisa mais de psicólogo do que de treinamento. Deve ser daquelas para quem o treinamento é um sofrimento, ao contrário de Diego, para quem tudo parece ser uma diversão. Se Jade lapidar a mente, brilhará muito.

Lembra Garrincha, que, apesar da boemia e das bebedeiras, não perdia treino e gostava de treinar. Tanto que, depois do treino, pagava meninos para ficarem catando bolas que ele chutava do escanteio, dezenas, centenas de vezes. Acabou com sete gols olímpicos registrados pela Fifa, dois deles feitos num mesmo jogo, além de muitos outros não registrados; um recordista mundial.

Garrincha é o mestre da alegria nos esportes, simbolizada pela sua reação depois da seleção canarinho vencer a primeira Copa na Suécia:

– Ué, já acabou esse campeonato? Não tem returno?

Outro ídolo com reações exemplares foi Adhemar Ferreira da Silva, o moço trabalhador que treinava salto triplo na hora do almoço. Na Olimpíada de Helsinque, quando já era o campeão mundial com a marca de 16,01m, fez quatro saltos batendo seguidamente os próprios recordes até chegar aos 16,22m da medalha de ouro que trouxe na maleta onde levava seu único par de sapatilhas. No Brasil, a Gazeta Esportiva lhe ofereceu uma casa de presente, ele recusou, senão perderia a condição de atleta amador e não poderia mais disputar olimpíada. Na de Melbourne, chegaria a 16,56m, primeiro brasileiro a ganhar duas medalhas de ouro olímpicas. No refeitório, antes das provas, um técnico estrangeiro perguntou quem era seu massagista, Adhemar falou que não tinha.

– Você vai saltar sem massagista?!

– É, senão fico muito pesado...

Menino, também virei fã de Wilma Randolph, a corredora norte-americana que teve poliomelite na infância. Convalescendo, foi jogar basquete com os meninos na rua. Recuperou a perna mirrada, foi treinar corrida, era a mais franzina de todas. Mas treinava como só. Acabou com três medalhas de ouro numa Olimpíada.

Também sou fã de Abebe Bikila, o corredor etíope que correu sua primeira maratona descalço, cercado pela indiferença de todos até cruzar a linha de chegada como vencedor. Então vários países acionaram o Comitê Olímpico para impugnar sua vitória, por correr descalço. A decisão do comitê foi realmente olímpica:

– Todos também podem correr descalços...

Cena inesquecível da maratona foi, na Olimpíada de Los Angeles, a chegada da suíça Gabriele Andersen ao estádio, capengando e cambaleando, fazendo os últimos cem metros em mais de cinco minutos. Depois justificaria porque não desistiu:

– Eu já tinha chegado até ali... E maratona não é para os que desistem.

Mas imagem esportiva maior, para mim, é Ayrton Senna ao volante, esperando a largada, concentrado, mirando um ponto longe, totalmente alheio ao movimento nervoso em redor, pilotos ainda ajeitando capacetes, acelerando os carros, auxiliares correndo para lá e para cá, e ele ali, quieto, as mãos no volante, olhando longe, parecendo uma estátua. Aí era dada a largada, ele fazia o carro saltar para a frente e se dirigia determinadamente para a vitória.

Afinal, a corrida era apenas o final de um processo. Ele já tinha participado dos acertos mecânicos e aerodinâmicos do carro, junto com os mecânicos e os engenheiros, metendo a mão na graxa enquanto outros pilotos se divertiam. Ele já tinha estudado atentamente a pista em cada detalhe. Já tinha se preparado fisicamente, tornando-se um atleta pronto para as provas mais desgastantes. Agora, dada a largada, só tinha de chegar ao ponto que mirava longe, a vitória, a ser perseguida em cada curva, em cada ultrapassagem.

Mestre da preparação, da dedicação e da concentração, se não tivesse morrido por culpa comprovada de uma solda mal feita na barra de direção, quantas vitórias mais teria conseguido Ayrton Senna?

Sempre que vejo alguém se dedicando nos esportes, tentando superar a si mesmo, superando recorde e portanto abrindo mais os horizontes humanos, penso em Ayrton e dedico a ele mais essa nossa vitória. Nossa, sim, pois toda vitória esportiva, todo recorde alcançado, é de toda a humanidade, dizia o professor Isaac, mestre de Educação Física que me ensinou essa dimensão maior do esporte:

– É vencer não para você, mas para todos. Não só todos da sua equipe, nem todos da sua torcida ou da sua cidade ou do seu país. Quem vence, vence por toda a Humanidade. Então vamos calçar esses tênis, vestir essa camisa e jogar nosso basquete não pelo nosso colégio, mas por toda a Humanidade, certo?

Um dia, perguntei:

– E quando a gente perde, professor?

– Ganha um estímulo para se preparar melhor, sem desanimar. A vitória é a meta, mas a derrota é natural, pois vencer não é um dever, nosso dever é só melhorar sempre. Afinal, somos humanos.

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