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A China me deu um prêmio literário, fui lá receber. Num salão imenso, com centenas de chineses sorridentes, recebi um cheque – mas o intérprete cochichou que deveria ser descontado e gasto na China.

Agradeci, o microfone zumbiu, alguém foi mexer botões, falei que era normal, produtos chineses sempre dão defeito.

– São feitos para custar baratinho e quebrar rapidinho, para a gente ter de comprar outro que também vai quebrar rapidinho.

O intérprete traduziu gaguejando, e o sorriso foi sumindo nas caras chinesas, mas ao final ele riu, como senha para dizer que era brincadeira, e todos riram. Mas eu continuei sério:

– Lá em casa quebrou ventilador, era meidinchina. Mas outro ventilador, antigo e nacional, continuou funcionando, feito de materiais duráveis, não esses plastiquinhos meidinchina.

O intérprete traduziu com olhares súplices, mas continuei:

– Nossas indústrias estão fechando porque não conseguem competir com os precinhos meidinchina, mas eu fiz questão de comprar outro ventilador nacional, na internet, as lojas não querem mais produtos nacionais, que ficam empoeirando nas prateleiras.

A chinesada me olhava fixamente como estátuas.

– E agora me dão um prêmio que só posso gastar comprando produtos chineses!... É um prêmio ou um castigo?!

Um chinês levantou na mesa de honra e falou alto sem microfone, o intérprete traduziu:

– O camarada líder informa ao escritor brasileiro que os produtos de seu país vendem muito pouco não só porque os nossos são mais baratos, mas também porque o custo de fabricação de vocês é muito alto, com legislação muito onerosa e a maior carga tributária do mundo!

Os chineses aplaudiram. O intérprete me sorria vitorioso. Tirei o microfone do pedestal e falei:

– Ao menos temos legislação trabalhista, nossos trabalhadores têm muitos direitos e proteções que as empresas têm de custear. Por isso, qualquer empresa brasileira é mais social que a China, que é socialista só de nome, na prática é um capitalismo com muito lucro para poucos e miséria para muitos!

O chinês líder rebateu:

– O escritor brasileiro precisa saber que quem mais ganha com a exportação de nossos produtos para seu país, são os empresários brasileiros que compram grandes quantidades por precinho pequeno para revender lá com alto lucro.

Retruquei:

– Enquanto os trabalhadores chineses são quase escravos, em nome do socialismo, o governo chinês compra trilhões em títulos europeus, investe no mercado financeiro capitalista!

Ele retrutrucou:

– Substituímos a luta armada pela luta financeira! Dominaremos o capitalismo com o capital suado dos trabalhadores chineses, investido estrategicamente para o mundo se tornar dependente da China!

Retrutrutruquei:

– Dependente da China ou do seu partido único protegido por censura e governo policial?

O intérprete me tirou o microfone, e eu rasguei o cheque. Centenas de chineses se levantaram gritando, e então ouvi Dalva me chamando. Acordei suado, ela disse que eu gritava, era pesadelo? Olhei ao lado da cama o ventilador quebrado, falei que era um pesadelo, sim, e chinês!

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