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O governo quer vigiar e controlar a imprensa, mas governo não serve para vigiar nada. Eis como exemplo minha ficha policial na ditadura, com 28 páginas contando muito do que então fiz de legal. Das ilegalidades, porém, nada consta, embora fossem bem mais importantes.

Muito me custou arrecadar dinheiro de simpatizantes para a guerrilha. Quantas visitas secretas, quantos cuidados, mas nada consta na ficha. Consta, porém, que protestei contra a poda de árvores em Y feita pela Copel. Fico feliz de saber que já era ecologista, e infeliz por ver que a fiação subterrânea, que acabaria com o massacre das árvores, ainda inexiste neste país.

Na ficha consta que presidi o lançamento do Comitê Londrinense pela Anistia. Não consta que policiais rondaram o prédio, lançando boato de bomba. Pedimos varredura à PF, riram. Então o jornalista Joel dos Santos Guimarães vasculhou até as privadas, rastejou pelas entranhas do prédio, e só depois que, com os cabelos cheios de teias de aranha, ele falou "Tudo limpo", autorizamos a entrada do público. Na ficha devia constar que aquela noite teve um herói chamado Joel.

Consta que o fichado contribuía "com uma parcela mensal de seus rendimentos" para a Anistia. Puxa, eu nem lembrava disso. Mas é triste saber que ajudei a custear uma democracia onde ainda persistem as ditaduras tributária e bancária.

Consta que em 14 de maio de 1979 o fichado "presidiu comício pela Anistia na Concha Acústica com 800 pessoas". É, devia mesmo ser maio, porque estava friozinho e vesti um suéter branco, disso lembro bem, como lembro do calor daquela gente democrata que, com lágrimas nos olhos, aplaudia com fervor cada discurso, cada música. Mas isso não consta da ficha.

Na ficha consta que, em 1979, "o fichado é esquerdista", quando, na verdade, eu já era um crítico da esquerda (como da direita). Discordava de José Richa, quando ele dizia que Anistia devia ser, antes de tudo, perdão. Os esquerdistas diziam que devia ser justiça. Eu dizia que devia ser superação. Anos depois, quando foram abertas as fichas policiais e soubemos os nomes dos alcaguetes infiltrados na universidade, houve quem pedisse demissão deles. Tive de publicar carta dizendo que a Anistia foi para todos, sem retaliações. Aí concordei com Richa, Anistia tem de ser, antes de tudo, perdão. Mas isso não consta da ficha.

Na ficha consta que fui receber exilados no aeroporto. Não constam os abraços apertados e as caras lambuzadas de lágrimas, a gente chorando feito criança e se prometendo continuar a lutar por um país justo, mas apenas através da democracia e das leis.

Consta que secretariei a fundação do PMDB de Londrina, mas não consta como foi maravilhoso juntar jovens ex-revolucionários com veteranos democratas como Richa, Wilson Moreira, Osvaldo Macedo, Olivir Gabardo, para almejar uma democracia com liberdade de imprensa, conforme Richa:

– A imprensa pode errar, porque erro maior é calar a im­­prensa.

Na ficha consta que, em 80, o fichado comparava Lula a Tiradentes e arrecadou dinheiro para apoiar a greve dos metalúrgicos no ABC. A ficha devia ser atualizada, para constar que hoje lamento Lula querer criar formas de controlar a imprensa que o ajudou a conquistar a liberdade sindical.

A ficha acaba em 81, e de lá para cá mudei muito, mas continuo democrata e contra governo querer controlar imprensa. Ou como dizia Richa:

– Governo bom não precisa temer a imprensa.

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