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Antes da campanha Catadores, da Globo, Dalva já começou a catar lixo na vizinhança aos domingos, com os netinhos.

Já catamos várias vezes, surpresos com tantas bitucas, maços de cigarro e papéis de bala. Estes, decerto jogados por crianças, que na escola aprendem ecologia mas... E os fumantes continuam achando que bitucas, por serem miúdas, não fazem mal ao mundo, mas quem cata vê que, por serem tantas, formam um problemão, que passa pelos bueiros e acaba lá nos riachos.

Caetano e Pietro ficam encantados com o que Dalva chama de Mundo Limpinho. Arrastam os sacos ou empurram a carrinhola cheios de responsabilidade e importância, apontam papéis, pegam tampinhas, disputam quem cata mais copos plásticos no campinho de futebol da praça, que não é mais usado porque está coalhado de pedras e cacos de vidro...

As pessoas olham desconfiadas, como se estívéssemos fazendo algo muito esquisito. Menina pergunta, Dalva diz que estamos fazendo o mundo limpinho, ela pergunta por quê.

- Porque nós não gostamos de sujeira.

A menina fica de boca aberta, como se tivesse ouvido um palavrão. Na calçada da sua casa há papéis e plásticos. Ela vai para dentro, a mãe aparece na janela espiando a esquisitice.

Mas também aparece gente que apoia. Uma senhora diz que sempre cata lixo na praça, e logo seu filho rapagão traz mais um saco e também ajuda a catar. Outra senhora diz que cansou de catar, o lixo sempre volta. Dalva sorri:

- A gente vai voltar sempre também – e logo a mulher também está catando lixo ao nosso lado.

Há os apoiadores, há os estranhadores, há os desculpistas, como o sujeito que, entrando em casa, já vai se desculpando:

- Eu sempre cato, e agora mesmo ia catar, mas apareceu um compromisso – e entra, e liga a tevê tão alto que se ouve da rua...

Um senhor apeia da bicicleta para perguntar:

- Vocês são da paróquia? Não? Da prefeitura?

Dalva diz que somos gente do bairro, só querendo ver o bairro mais limpo. Tundo lipino, diz Caetano, e Pietro corrige:

- Mudo lipio.

O homem balança a cabeça, abobado, vai pedalando. Lá adiante uma mulher fuma no portão, diante da calçada coalhada de bitucas. Ela joga a bituca, eu cato, ela fala indignada:

- Eu ia varrer!

Dalva sorri:

- Se a senhora não se incomodar, a gente cata – e continuamos catando. Ela bufa, solta as palavras como pedras:

- Tão querendo o que com isso?

- Deixar o mundo limpinho.

Mudo lipio, Pietro repete. A mulher se espanta:

- E acham que vão conseguir?

Digo que vamos conseguir, cem por cento. Ela ri:

- Cem por cento? Amanhã tá tudo sujo de novo!

Digo que ela não entendeu:

- A gente faz isso pra se sentir bem. E, como sempre que fazemos nos sentimos bem, conseguimos cem por cento, não?

Ela fica sem palavras, dá as costas para entrar em casa e, no caminho, já vai pegando outro cigarro. Caetano pergunta por que a mulher tá brava, Dalva diz que tem gente que não gosta do mundo limpinho, Pietro cata uma bituca e repete: mudo lipio.

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