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Ela pergunta se finalmente achei seus óculos, mas já testei que ela lê muito bem, então para que os óculos?

– Porque são meus, ué!

– Mas por que a senhora se preocupa tanto com coisas pequenas?!

– Porque as grandes não me alcançam.

Fico pensando, surpreso com a resposta, e então ela, com uma voz distante, diz que gosta de usar os óculos para fechar os olhos e ver o que passou.

– Ver a minha mãe, a batata-doce que ela deixava pra você no forno do fogão a lenha, e o bolo de fubá, lembra?

Fecho os olhos, revejo Vó Sebastiana, tão magrinha e tão luminosa na sua fé, sempre com aquele pavio a arder no copo de azeite. Revejo o dia em que, do alto da mangueira, joguei uma faca num primo que me insultou, e que arrancava mandioca com a vó no quintal, e a faca enterrou na canela dela. Fugi correndo para casa, passei o dia lendo escondidinho debaixo da cama, até minha mãe chegar à noitinha e, agachada ali, me dizer que só não ia me bater porque tinha prometido à vó, que, mesmo com a perna enfaixada no hospital, tinha ajoelhado para pedir que eu não apanhasse.

Num piscar passam anos, revejo o velório da vó e depois, na reunião da família entre café e pães murchos, minha mãe, essa mulher agora alquebrada aí, a esticar o dedo para meu avô, que queria continuar com a filha caçula em casa:

– Não, senhor meu pai, não! O senhor quer é uma empregada, pra limpar, lavar e cozinhar, como minha mãe fez a vida inteira, mas essa minha irmã aí não vai repetir o nosso destino, não, não vai ser "dona" de casa, não, vai ser é dona do seu próprio nariz, vai morar comigo, vai estudar e ser o que quiser na vida, o senhor queira ou não, ou então tem de passar por cima do meu cadáver, entendeu?

Revejo os tios todos engolindo medo e espanto na casa ainda com o cheiro das flores e velas do velório, todos esperando uma explosão do velho, e então ele baixando a cabeça para dizer você quem sabe, Maria, você quem sabe.

Revejo essa mulher aí, que mal consegue andar, chegando em casa com malas cheias de sedas e relógios, contrabando que buscava no porto de Santos, para mascatear e nos sustentar nos primeiros tempos descasada do pai. Alguém lhe perguntou se não tinha vergonha daquilo, riu gostoso:

– Vergonha é não trabalhar e depender de homem!

Revejo na Pensão Alto Paraná essa mulher agora com as mãos atrofiadas pela artrite, a mexer com o colherão de pau o caldeirão de feijão (tão grande que vazio eu menino cabia em pé dentro dele), ela a comandar a cozinheira e as ajudantes com os cabelos amarrados com lenço, os olhos úmidos da fumaça de lenha e de bife. E de repente alguém avisando que um peão bêbado tinha vomitado no corrredor, ela suspirando fundo e perguntando se tinha vomitado antes ou depois de comer; tinha sido antes.

– Melhor, ao menos não perdeu o almoço.

Revejo essa mulher a ralar espigas para encher tachos de caldo e fazer pamonhas, alguém dizendo que era mais fácil comprar feitas, e ela:

– Deus me livre, se eu comprar pamonha feita, minha mãe vem de noite me assombrar!

Revejo essa mulher, que hoje anda arrastando os pés no andador, a exigir que os peões limpassem o barro dos sapatos no chora-paulista da pensão, a barra de ferro sobre duas estacas ao lado da porta.

– Barro fica pra fora da porta, e urina fica dentro da privada, corto o pinto de quem urinar fora!

Os peões riam com seus dentes de ouro, mas obedeciam. E então revejo quando ela nos enfiou num barco com motor de popa, para ir pelo Rio Paraná, de Presidente Epitácio a Porto Rico, para então pegar um jipe até Cruzeiro do Oeste visitar Tia Glória. Pergunto se ele lembra da fome que nos deu depois de um dia inteiro naquele riozão, sentindo vontade de comer até madeira, quando passavam as chatas com toras recém cortadas recendendo ainda a serragem.

– E lembra, mãe, daquela sopa naquele hotelzinho em Porto Rico, onde chegamos já noite depois da hora da janta? Só tinha aquela sopa e foi tão bom!

Ela sorri:

– Então, não é bom rever as coisas? De óculos fica melhor ainda. Você precisa achar meus óculos!

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