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Depois de sete meses dormindo com o janelão aberto, fechei, obedecendo ao comando do velho Outono, que todo ano me visita, a apalpar com seus dedos frios meus tendões e ossos. Fiz um haicaipira para ele:

Chegou o outono o gato enrolou ronronando no edredon

Note a sutileza, Outono: todas as palavras tem "o", imitando o gato enrolado e sugerindo a maciez dos gomos do edredon.

Quando era moço, Outono, eu não sentia frio, mas também não era sutil.

Foi numa fila de banco que senti dor nos pés pela primeira vez, fiquei pensando o que seria aquilo.

– A idade – minha mãe falou certeiramente quando lhe contei, e, pela primeira vez na vida, me vi diante de um sinal de envelhecimento, como um cachorro caído de caminhão olha em torno para tomar rumo.

Depois a barba começou a branquear, até que cortei, como quem corta um pedaço pendente do passado ultrapassado, as crenças superadas, a indiferença ao tempo. Pois, o tempo passava e eu não tinha tempo para perceber, sempre ocupado com tantas coisas!

Hoje, consciente de que tenho menos tempo de vida, acho tempo para perder tempo pensando no tempo, olhando o gato a se enrolar no cobertor, a janela embaçada pela neblina, a beleza de minha mulher bafejando nas mãos antes de pegar o pão.

Ela me vê sorrindo, pergunta que foi, digo que não foi, é:

–É o tempo passando e você sempre mais bonita.

Ela sorri linda, me beija e, depois que se vai, fico pensando quanto tempo terei ainda para desfrutar desse amor. Um por um cato com as pontas dos dedos os farelos que ela deixou, pensando nos minutos que vão esfarelando o grande pão do tempo.

Fico ouvindo, como fina música, o som de lixa das mãos esfregando o friozinho, fazendo o gato levantar a orelha e abrir um dos olhos, numa preguiça outonal, para ver que estou em paz e voltar a ronronar enrolado no edredon.

Ele não pensa no tempo, não tem consciência do outono, apenas vive o outono, pobre gato. Você não sabe como é bom se saber no outono e, com outonidade, pegar a maçã como quem pega um prêmio, morder como quem morde a própria vida, sentir o gosto como na primeira vez em que comi maçã, menininho. Naquele tempo maçãs eram raras, vinham só da Argentina, e numa viagem de férias, a caminho da praia, mãe pediu e pai comprou, cortou em metades com o canivete, a irmã ficou olhando sua metade antes de comer, eu mordi logo e ela falou nossa, como você é esganado.

Agora, ela já se foi naquela viagem de que ninguém volta, e o esganado continua aqui, a saborear a vida. Quantos outonos mais? Pergunto ao gato, ele abre o olho, vê que nada tenho nas mãos para lhe dar, fecha o olho voltando para seu mundo sem palavras.

Então um passarinho canta lá fora, outro responde, abro a janela, entra sol, o céu de outono é azul como só, e as roseiras continuam a florir desafiadoras.

Vocês tem razão, passarinhos, era outono até há um minuto, agora já parece primavera. O sol está no coração, a bombear seus rios vermelhos de paixão. Pego o edredon, o gato cai assustado, rio.

– Vai viver, vagabundo! – digo a ele, e vou fazer o que digo.

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