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O escritor Domingos Pellegrini e a mãe | Arquivo pessoal
O escritor Domingos Pellegrini e a mãe| Foto: Arquivo pessoal

Minha mãe morreu sem sofrer nem temer, a julgar pelos seus olhos no dia em que não conseguiu mais falar – mas olhava tranquila, com um leve sorriso.

Mais alguns dias e, quando eu chamava, olhava através de mim, olhando longe, como a dizer adeus, meu filho, eu já estou indo para outra estrada...

Jeito havia de prolongar sua vida, mas à custa de muito sofrimento. Teria de passar por hemodiálise, pois seus rins estavam pifando; teria de se alimentar por incisão na traquéia, e acabaria sendo entubada.

Decidimos não fazer nada disso, como permite o novo código de ética médica (e mesmo que não permitisse), obedecendo a seu último pedido quando ainda lúcida:

– Não quero ir para hospital, quero morrer no meu quarto, na minha cama.

Os cachorros, tão sensitivos, ficaram tristes pelos cantos. E eu, que evito ir a velórios, porque choro muito, perdendo o controle e até as lentes de contato, tive a graça de ficar sereno durante todo o tempo, talvez porque há tempo esperasse a partida dela, pois vinha enfraquecendo devagarinho.

Mas eu temia a rezação. Temia que alguém puxasse um terço e desfiasse a mastigação automática das rezas, prática tão comum quanto inconsciente.

Enquanto transcorria o velório, vários de seus amigos e amigas lembraram de como receberam preces dela, no tempo em que foi rezadeira, benzedeira e conselheira, atendendo gente às vezes o dia inteiro. E lembrei dela, falando sobre o poder da prece:

– Reza é uma coisa, prece é outra. Reza só faz bem pra quem reza, mas prece faz bem para os outros, e cura mais que qualquer remédio, cura até doença mental, que é a pior doença.

E eu, que sempre digo ser o preconceito a maior doença mental do mundo, vi que estava sendo preconceituoso contra a reza, afinal um costume que mal nenhum faz. Então, antes do caixão ser fechado, pedi a Dalva para puxar uma prece, e ela (sem saber de minhas especulações) puxou duas rezas, um Pai-Nosso e uma Ave-Maria, e em seguida fez uma prece muito simples:

– Que ela vá iluminada, e que as boas lembranças dela iluminem a nós todos.

Me senti aliviado e feliz pois, sem combinarmos nada, foram atendidos os que creem em rezas e os que creem em preces. E o caixão dela ficou tão leve! E, seguindo ideia sua, sua lápide terá uma quadrinha: "Rezei muito para muitos/ rezei tanto – e enfim / portanto não peço muito: / rezem um pouco por mim..."

Tiao, mãe; e, embora eu ainda não creia em outra vida, se algum dia te rever, quero agradecer pela última lição, com um beijo em tua testa, como você gostava, me olhando e dizendo:

– Ah, meu filho, carinho faz tão bem...

Também não creio em anjos, mãe, mas, se existirem, desejo que sejam muito, muito carinhosos com você.

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