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 | Felipe Lima/Gazeta do Povo
| Foto: Felipe Lima/Gazeta do Povo

Estava eu comendo uma tangerina no banco mais traseiro de uma van que sacolejava por ruelas de barro do interior de Minas Gerais quando surgiu o assunto: cheiro na mão. Era a terceira fruta que eu comia em meia hora; contando o que o grupo de seis pessoas comeu, acho que devoramos quase duas dúzias. Tudo cheirava a fruta: meu cabelo, meu casaco (havia outras duas tangerinas no bolso esquerdo e uma noz macadâmia e três limões cravo no direito), minha calça e o estofado do veículo. Era uma manhã de sol ameno em maio e a cada dois quilômetros avistávamos grupos pequenos de vacas leiteiras passeando pela Serra da Mantiqueira. Os contornos da região parecem o relevo de uma manhã preguiçosa na cama. A conversa era pouca. A paisagem, bela. O cheiro de tangerina impregnado era o ponto pacífico que avistamos antes mesmo de começar a travessia. Distraídos, passamos reto.

Não demorou muito para a conversa dar um solavanco. “Cheiro de tangerina é tudo de bom”, afirmou uma. Todos concordamos: sim-sim, que delícia. Penso: é o cheiro do inverno, das minhas memórias de infância no meio do mato catando fruta e rolando bosta de vaca morro abaixo, de casa cheia, de colônia docinha. “Cheiro de comida não tem como ser ruim”, arrisquei uma continuação. Não tem mesmo, oras, eu não minto nem em conversa mole. “Ah, mas cheiro de comida-comida não dá”, retrucaram. Me babei mordiscando um gominho: como assim não dá? Claro que dá. É só não ser peixe que dá. O motorista atropelou um buraco – as tangerinas se espalharam pelo chão do carro feito multiball no pinball. Deu tilt na small talk.

Fiquei com aquilo na cabeça: e o cheiro de orégano quando a gente esfrega para colocar na pizza? E o de laranja depois de ter feito suco à mão? E o aroma de azeite de oliva que fica na gente quando pegamos uma garrafa babada? E a dupla alho-e-cebola, que não dá trégua um diazinho sequer pras mãos que colocam a comida na mesa? Vão sumir com todas as nossas recendências?

A polêmica da última semana me fez ter preguiça de saber usar a internet. Alguns alegaram que os gominhos de tangerina embalados resultarão em uma falha de caráter irreparável na nova geração. Outros avistaram um sinal claro de que a vida moderna exige de nós rir e aceitar o ridículo da situação: comprar uma fruta descascada, porém meticulosamente embalada. Em plástico filme e isopor. Impossível não descambar para a distopia.

Esses odores que grudam na gente são as lembranças menos viscerais de uma refeição que talvez não seja memorável, mas certamente não é tão esquecível assim. Você picou bem miudinho uns dentes de alho para uma xícara de arroz, fez um bife acebolado, um feijão caprichado. Descascou meia dúzia de tangerinas num momento de contemplação ou só uma mexeriquinha no intervalo do trabalho. E se chatear porque ficou com cheiro na mão? Ah, vá! “Alho-e-cebola é perfume de casado”, teve que ouvir uma colega recém-amasiada dia destes. Que nada: é cheiro de vitória. Não precisa casar para chegar lá, é só fazer seu próprio almoço. E pros enjoadinhos, sabonete de inox (ou gominhos embalados).

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