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Romance

A Caixa – Histórias da Câmara Escura

Günter Grass. Tradução de Marcelo Backes. Record, 224 págs., R$ 42.

Foi o psicanalista inglês Wilfred Bion quem falou na impressionante existência de uma "memória do futuro". Há uma surpreendente inversão do tempo nesta expressão, "memória do futuro", algo que nos arranca o chão de sob os pés: em vez de nos arrastar para trás, nele a memória nos empurra para a frente e para o porvir. Mas não é sempre assim? Memórias são narrativas a respeito do passado que inventamos para suportar o presente. Para sustentar o real. Para dar sentido a nossa existência. Para viver — e o que mais vivemos, senão o presente?

A memória está sempre impregnada da imaginação. Ela não existe sem o recurso da fantasia. Não se pode lembrar sem sonhar, tampouco é possível recordar sem antever. O tempo, nesse caso, se embaralha, os limites entre os diversos tempos verbais explodem. O mundo desaba, ou se amplia? Ideias estranhas, mas tonificantes, que me vêm durante a leitura de A Caixa — Histórias da Câmara Escura, novo livro do escritor alemão e prêmio Nobel de Literatura Günter Grass.

Trata-se, antes de tudo, de um clássico "livro de memórias". Espécie de sequência do inaugural, Nas Peles da Cebola, em que o escritor alemão rememora o doloroso tema de seu envolvimento, na juventude, com o exército nazista. Recorrer ao passado nunca é fácil, pois nem sempre encontramos aquilo que dele esperamos. O novo livro é resultado de uma experiência familiar. O pai Günter pede a seus filhos que comecem a gravar suas próprias memórias de infância e juventude. A ideia é reconstruir o passado. Um desejo obsessivo rege esta ideia: não perder o controle sobre o que se passou. Mas esse resgate do passado termina por ser um desgaste do próprio presente, que abre uma fenda para o porvir. O templo explode nas confissões dos filhos de Günter Grass. Só é possível lembrar quando também sonhamos.

O trabalho da memória é um trabalho de reconstrução. Experimente relatar a um amigo um sonho que você teve na noite passada. Irá se defrontar com muitos furos, partes obscuras, incongruências, vazios. Irá preenchê-los com o quê? Com o que mais, senão com a fantasia? Além disso, quando reconstruímos o passado, é o presente que surge, monstruoso, à nossa frente! É o real que nos dá sua cara. O futuro não passa de uma precária esperança entrevista nas brechas estreitas dessas narrativas. Não importa, em consequência, se usamos da mais alta tecnologia, ou se nos contentamos — como faz Marie, amiga e confidente de Grass — em usar uma velha máquina Agfa, hoje uma peça de museu. Toda captura é uma deformação e, em consequência, uma formação de um novo tempo, que oscila entre passado e futuro. Sim, o presente é oscilante, é instável, é inquieto justamente porque ele é uma conexão entre dois tempos, a rigor, inexistentes; um porque não volta mais, e o outro porque jamais poderemos saber como será.

O delicado livro de Grass — no fundo, não uma "aventura histórica", ou "biográfica", mas uma entrega sem freios à imaginação — me faz lembrar de uma irmã, Sandra, que perdi há um ano e meio. Vivia interessada em promover encontros entre os irmãos, que passassem a limpo nosso passado familiar. Vivia com o desejo de acertar as contas com o que fomos, porque acreditava que só assim poderíamos — teríamos o direito? — de, enfim, ser. Sempre me neguei a participar desses debates sobre um tempo perdido, não só porque me pareciam irreais, mas porque me tiravam a liberdade de reconstruir meu passado e, portanto, meu presente, e ainda esboçar um futuro, à minha própria maneira.

Mas Sandra era insistente e sempre afirmava que eu "fugia". Talvez fugisse, mas de quê? Fugia de seu desejo ardente de confrontar-nos, enfim, e em definitivo, com a verdade — confronto que pode ser massacrante e pode, até, deformar o presente, diminuí-lo, destroçá-lo mesmo. Sempre prezei muito minhas verdades particulares, por mais frágeis, débeis e até inúteis que sejam. Sempre acreditei que a verdade não é algo que se recupera, mas algo que se constrói — e na mais absoluta solidão. Os encontros propostos por minha irmã desejavam "administrar" a verdade, organizá-la, chegar, enfim, a uma "versão revista e definitiva". Não, aquilo nunca me interessou.

Um sentimento parecido, talvez, tenha guiado Grass quando sugeriu a seus filhos que reconstruíssem, através de encontros protocolares, seu passado, seus ressentimentos, suas queixas, suas dores. Não sabia ele (ou sabia, o que é o mais provável, pois é um grande escritor) que, ao mexer com a verdade, estava lidando com a própria impossibilidade de uma verdade fechada e definitiva. Convocava, assim, seus filhos para se entregarem a um movimento suave em torno da memória. Sem que eles provavelmente percebessem, convidava-os para um encontro não no passado, mas no próprio presente. Com a câmara escura de Marie, convidava-os — como meninos curiosos que olham por uma fechadura — para se aproximarem um pouco, muito pouco, mas já o bastante, de algum esboço de futuro.

Não faz outra coisa a literatura, que trabalha sempre — mesmo quando o escritor não quer isso, mesmo quando abomina isso — com os restos da memória, com os despojos e as sobras de tempos perdidos. O mais futurista dos escritores (Marinetti?) trabalha, ainda assim, com o passado. Mas, ao contrário dos historiadores, o escritor não deseja reconstruí-lo. Observa o passado mais como um combustível, capaz de alimentar o presente, de energizá-lo. Sim: através da proposta ousada de Grass, seus filhos, sem planejar isso, se aproximaram ainda mais entre si. Talvez tenha sido isso o que eu mesmo tenha perdido ao me negar a participar do projeto de minha irmã.

Embora prometa o passado, o novo livro de Grass deve ser lido, mais, como um sonho. Sonho (humano) de recuperar aquilo que não recuperaremos mais. Sonho (sempre humano) de vedar e colar aquilo que se deixou perfurar e, mesmo, que se quebrou. Sonho (cada vez mais humano) de apossar-se do futuro, de moldá-lo, de dominá-lo. Sonhos — do que mais somos feitos?

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