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Poeta

O Gueto e O Eco da Minha Mãe

Tamara Kamenszain. Tradução de Carlito Azevedo e Paloma Vidal. 7Letras, 122 págs., R$ 32.

Como nomear o desaparecimento? Como encontrar uma palavra para o que se ausenta? "Ontem descobri que tinha me tornado ainda menos eu para ela", escreveu a argentina Sylvia Molloy, para quem o esquecimento, a queda e a morte sustentam a escrita poética. Não é só aquele que se despede que se desmancha e encolhe. Também quem fica se achata e apequena. Suas palavras agora servem de epígrafe a outra argentina, a poeta Tamara Kamenszain. Tanto Sylvia como Tamara falam do esmaecimento do Eu, que o avançar dos anos estraçalham, transformando em uma borra. Tamara usa as palavras de Sylvia em um poema de O Eco da Minha Mãe (tradução de Paloma Vidal, 7Letras), livro que vem em edição dupla com O Gueto (este traduzido por Carlito Azevedo e pela mesma Paloma).

Envelhecer, avançar lentamente para a morte, é suportar um Eu em destroços. Reféns do Alzheimer, mãe e filha se desencontram no mesmo deserto, onde as palavras sobram como farelos e onde toda tentativa de aproximação só produz uma distância maior. Sei do que fala Tamara porque também eu tenho uma mãe que se perde nos corredores do Parkinson. Difícil definir essa doença, dizem os médicos. Parkinson? Alzheimer? Talvez os dois? A verdade é que tanto faz. Não passam de diagnósticos com que os doutores lutam para conter uma avalanche que os arrasta também. Um desmoronamento, de que Tamara, mais esperta, faz poesia.

Restam os últimos esforços, a insistência no movimento, a luta contra a lacuna que mãe e filha tentam vedar com o teatro lamentoso do Eu. "Minha mãe copia o que era/ enquanto eu plagiando o plagiário/ tento passar a limpo esse diário de vida/ que a autora dos meus dias escreve como pode". Pergunto: é só a mãe agonizante quem "escreve como pode", ou não será isso, o "como pode", condição e fundamento de qualquer escrita? Não duvido de que há um contraste entre a palavra que, mesmo frágil, ascende, e a outra que, lutando para manter-se forte, decai. Escreve Tamara a respeito: "sou agora a filha que cresce sem remédio/ pra deixá-la decrescer tranquila entre os meus braços/ assim juntas vamos nos separando". Há um intervalo que, a cada avanço, se acentua: um abismo. Há um "entre" – espaço neutro e abissal – que, com a voracidade dos lobos, abre sua boca.

Sinto isso, cada vez mais, quando vejo minha mãe, Lucy. Quanto mais dela tento me aproximar, e quanto mais ela luta para se agarrar em mim, mais nos afastamos. Tem sido melhor, bem melhor, o silêncio. Mesmo sem sono algum, quando a visito, ela prefere conservar os olhos fechados. Simulando um sono, ou vestindo a máscara em que, lentamente, se transforma? Para não me ver, ou para não se ver? Na verdade, para não mirar a lacuna que se alarga entre nós. Também Tamara a habita. Em seu belo prefácio aos dois livros, Adriana Kanzepolsky assinala uma identidade: "poeta do entre". Identidade que, em vez de identificar, anula. Em vez de aproximar, separa. Podemos atribuir ao Alzheimer, ao Parkinson, a qualquer nome estranho que o doutor disser. De nada servem as palavras, o desfiladeiro se abre e é cada vez mais íngreme, a descida irreversível.

Em contraste com a agonia, as palavras se tornam assombrosas. Segue, por mim, Tamara: "a gramática se torna um escândalo/ quando ela que esqueceu as palavras/ adianta seu bebê furioso/ a fim de dizer tudo/ mesmo que nada se entenda". O desejo do tudo – pesadelo da gramática comprimida em uma única sílaba – só produz incompreensão. Melhor o silêncio, que não expõe essa ferida. Melhor minha mãe de olhos fechados, mesmo viva e atenta. Melhor a morte? No primeiro livro, "O gueto", Tamara se detém na morte do pai. "Sigo para a luz/ dizia-me em sonho meu pai morto./ Seu sorriso se esfumava em dupla lonjura/ trazia no entanto uma tranquilidade luminosa:/ havia uma mensagem literal/ enunciando claríssimo onde a luz é a luz é a luz é a luz". Só a morte é fixa. Talvez (insuportável) só a morte admita a palavra definitiva: a própria palavra morte. Já que todas as outras palavras se movem sem parar, e se rasgam em múltiplos sentidos. Manobras tensas, mas belas, a que Tamara se entrega com volúpia.

Não é só a doença (sonho dos médicos) que nos adoece: a vida, antes dela, bem antes, também. "Deus escreve a diferença/ no espelho da desordem genética", nos diz Tamara. "Diferença idêntica/ faz rir de tanto nos parecermos". Estamos diante do mito da espécie, como se todos fôssemos assinalados pela mesma luz, em vez de carregar, cada um, com seu peso e à sua sorte, uma luz diversa. Por isso as palavras se movem, enlouquecidas. Por isso os poetas (Tamara) escrevem sem parar: em uma luta, fadada ao fracasso, para agarrar a coisa. Resta-lhes a grade da linguagem. Cheia de furos, por eles escorre o que não vemos. Nela sobrevivemos. Prossegue Tamara: "Deus nos arquivará diferentes/ em seu livro dos parentescos". Em "O gueto", a poeta luta para entender de que modo se enredou – de que modo foi arrastada – pela morte do pai. É ele agora quem morre, ou mais: quem já morreu. Pais quase sempre morrem primeiro.

A própria morte, porém, nos engana com sua ilusão de conclusão. Constata Tamara: "O que é um pai?/ Com a primeira estrela/ chega o shabbat/ e ainda não tenho resposta". A poeta sabe que deve persistir na busca, não até o dia em que encontrará a resposta, mas até o dia em que conseguirá esquecer a pergunta. "Eles se dispersaram, mas eu/ filha de Tuvia ben Binjamin,/ continuarei buscando acordada/ para depois/ poder esquecer". A morte promete Tudo, mas nos entrega o Nada. Como um filme que abandonamos pelo meio, um livro de que rasgamos as últimas páginas. Tentando observar o próprio luto, no cemitério judeu de Buenos Aires, tudo o que a poeta vê é o imenso vazio - grande campa que impõe o silêncio onde as palavras deviam estar. "Com cara de cansado um rabino passa amassando/ a página de kaddish no bolso". Palavras: de nada servem. Restam suas migalhas, humanas, com que os poetas constroem suas túnicas. Inúteis: a lacuna não se deixa encobrir.

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